domingo, 2 de agosto de 2015

Deu certo na Espanha. Daria aqui?

• No Pacto de Moncloa, os espanhóis se entenderam para debelar uma crise simultaneamente econômica e política. O caso pode ser uma inspiração para o Brasil

Guilherme Evelin e Ruan de Souza Gabriel - Época

Se o Congresso agir responsavelmente na volta do recesso parlamentar, como se espera, e não aprovar projetos para aumentar ainda mais os gastos públicos, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, vai ganhar mais tempo para tocar seu plano de ajuste. Está ficando, porém, cada vez mais claro que o desarranjo fiscal não se deve apenas às estripulias financeiras cometidas no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. Ao contrário de outros ajustes, como o feito em 2003, no primeiro ano do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a economia não vai voltar a crescer rapidamente, e a questão da solvência das contas públicas vai permanecer, mesmo que o governo cumpra as novas metas de superávit primário (o tamanho da poupança para estabilizar a dívida pública) fixadas para 2015 e 2016. Economistas que viam com simpatia o governo Dilma, como o ex-ministro Delfim Netto, dizem agora que o ajuste não poderá ser "circunstancial". O próprio Levy passou a afirmar que a questão das contas públicas é "estrutural".

Esse debate é um dos efeitos de um estudo de nove páginas feito pelos economistas Marcos Lisboa, Mansueto Almeida e Samuel Pessoa (leia a entrevista com Pessoa na página 46). No estudo, eles mostram como os gastos públicos, por causa da Previdência Social, de programas sociais e de uma série de subsídios dados pelo Tesouro Nacional de forma não transparente, vêm crescendo num ritmo acima da renda nacional desde 1991. Mantida a tendência até 2030, os gastos com educação, saúde e Previdência aumentarão R$ 300 bilhões, cerca de 6% do Produto Interno Bruto (PIB). Por um tempo, essa conta fechou. Agora, ela não fecha mais. Para bancar esses gastos crescentes, seria necessária, pelas contas dos autores do estudo, a criação de impostos equivalentes a quatro CPMFs (o antigo imposto sobre movimentações financeiras). Num país onde a carga tributária aumentou de 25% do PIB em 1991 para mais de 35% em 2014, isso não é mais possível. Segundo os economistas, a saída é rever o modelo de "Suécia tropical" (expressão do ministro dos Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger), instituído no país desde a Constituição de 1988.

Como sugere o título do estudo, O ajuste inevitável, ou o país que ficou velho antes de se tornar desenvolvido, os economistas consideram que, com a crise, a realidade vai impor essa agenda ao país. Segundo disse o economista Marcos Lisboa a ÉPOCA, há duas maneiras de o Brasil enfrentar essa questão, uma ruim e outra boa. A ruim seria a repetição de um caminho como o percorrido pelo país na década de 1980, a "década perdida". Por adiar o enfrentamento de uma série de problemas estruturais do Estado brasileiro, que acabaram levando à hiperinflação, o país levou mais de dez anos em crise até estabilizar a economia brasileira com o Plano Real, lançado em 1994. O bom caminho, sugere o estudo, é "reconhecer que há escolhas difíceis sobre os benefícios a ser mantidos e os que devem ser revistos". Esse caminho exige um governo com autoridade política para tal (qualidade que aparentemente falta ao governo da presidente Dilma Rousseff) ou um pacto entre as forças políticas em que todos estão dispostos a fazer concessões e abrir mão de suas ambições em prol do bem comum.

A ideia de um pacto nacional já foi defendida em entrevista a ÉPOCA pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo, de tendência oposta à dos autores do estudo, e é sempre suscitada em momentos de crise. A inspiração de todos que pensam num acordo dessa envergadura é o Pacto de Moncloa, firmado na Espanha em 25 de outubro de 1977. Foi assim chamado por ter sido assinado no Palácio de Moncloa, em Madri, por todos os partidos com representação no Parlamento espanhol - num momento em que a Espanha, como o Brasil agora, também enfrentava uma crise econômica e política. O país vivia a transição da ditadura de Francisco Franco para a democracia e, ao mesmo tempo, vários problemas estruturais, que se tornaram evidentes com a crise da alta dos preços do petróleo em 1973. "Um desses problemas é que a ditadura franquista havia conferido a determinados setores industriais uma série de vantagens que se tornaram excessivas e insustentáveis", escreveu Caries Sudrià, professor de história e instituições econômicas da Universidade de Barcelona. Pela sobreposição de crise política e econômica, e até pelo abuso de subsídios, o quadro tem uma leve semelhança com o vivido hoje pelo Brasil.

Com o Pacto de Moncloa, além de concordar em enterrar todo o entulho autoritário da ditadura franquista, as forças políticas espanholas se comprometeram com uma política monetária e fiscal austera e rígida, que se manifestava por meio de superavits primários, privatizações e juros altos para combater a fuga de capitais e uma inflação que ultrapassava os 26% ao ano. O câmbio flutuante e a desvalorização da peseta (antiga moeda espanhola) foram outras medidas adotadas para facilitar as exportações e melhorar o resultado das contas externas. Os trabalhadores espanhóis, que vinham se mobilizando em greves cada vez mais numerosas, concordaram em abrir mão de aumentos reais de salário em nome do pacto. Os reajustes foram limitados a um teto abaixo da inflação acumulada e baseado na inflação prevista.

O Pacto de Moncloa criou as condições econômicas e sociais que permitiram à Espanha superar a crise, consolidar a democracia e dar um salto de desenvolvimento. O país, que até os anos 1980 tinha características de Terceiro Mundo, virou uma nação moderna da União Européia. O pacto teve um grande artífice: Adolfo Suárez, o presidente do governo espanhol em 1977. Protótipo do arrivista, Suárez chegou ao posto depois de ascender no firanquismo por meio de demonstrações de bajulação e servilismo e virou o "herói da retirada", como o definiu o poeta alemão Hans Magnus Enzenberger. O herói da retirada é um herói paradoxal, pois ocupa uma posição estratégica que pode garantir o estado das coisas, mas opta por matar aquilo que teria o poder de ressuscitar. Suárez tinha a chance de conferir um novo fôlego ao firanquismo, mas preferiu enterrá-lo de vez para construir a democracia espanhola.

Protagonista do livro Anatomia de um instante (Globo Livros), do escritor espanhol Javier Cercas, Suárez teve seu momento de heroísmo real ao resistir a um golpe militar em 1981. Às 18h23 do dia 23 de fevereiro daquele ano, 186 membros da Guarda Civil espanhola, armados com metralhadoras e revólveres, comandados pelo tenente-coronel Antônio Tejero Molina, franquista, invadiram o Parlamento espanhol e ordenaram: "Todo mundo no chão". Suárez não obedeceu e permaneceu sentado, "sozinho, estatuário e espectral, em meio a um deserto de cadeiras vazias", segundo a descrição de Cercas. O vice de Suárez, o general reformado Manuel Gutiérrez Mellado, e o líder comunista Santiago Carrillo também não se curvaram. O improvável líder do país resistia ao lado de um militar e um comunista, o que ilustrava a amplitude do pacto que ele foi capaz de costurar. E a democracia venceu.

"Suárez carecia de uma boa preparação acadêmica, de uma grande cultura e de grandes princípios, mas tinha as virtudes fundamentais para um político, naqueles anos cruciais de transição da ditadura para a democracia", disse Cercas a ÉPOCA. "Tinha sentido da realidade, conhecia bem o país, não era soberbo, sabia escutar, sabia colocar-se no lugar de seu interlocutor e aprender com ele, era capaz de colocar o interesse do país acima de seu próprio interesse. Era valente, quase temerário. Sua tragédia e grandeza é que destruiu um sistema que manejava como ninguém - o franquismo - e construiu um outro que não sabia manejar - a democracia."

O Brasil nunca teve algo parecido com o Pacto de Moncloa. O mais próximo que tivemos de um pacto nacional foi o governo de coalizão formado em torno do presidente Itamar Franco, em 1992, num momento de um trauma para o país: a crise econômica dos anos 1980 ainda não fora debelada, e o primeiro presidente eleito depois da redemocratização - Fernando Collor - sofrerá um processo de impeachment. O PT, porém, optou por ficar fora do governo. Itamar teve um quê de Suárez e também foi nosso herói improvável. Conduziu seu breve governo aos trancos e barrancos, mas lançou o Plano Real, que criou as condições de estabilização da economia brasileira.

A atual crise brasileira pode desembocar num pacto à Moncloa? A última campanha presidencial deixou um lastro de ressentimentos, como mostra a entrevista de Samuel Pessoa e a rejeição do ex-presidente Fernando Henrique a manter um diálogo com o PT. Além disso, a presidente Dilma ainda não mostrou nenhuma vontade de se dissociar da herança política e econômica do lulismo que a levou ao poder. Existem momentos, no entanto, em que é preciso ser um pouco Adolfo Suárez. As verdadeiras revoluções da História, aquelas que duraram e renderam frutos, foram lideradas por espíritos conciliadores. Essa lição vale ouro no Brasil de hoje.

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