sexta-feira, 21 de agosto de 2015

César Felício - A remoção dos destroços

• Inferno de Cunha chega em momento falimentar de Dilma

- Valor Econômico

Em 2012, ano em que a atividade econômica ainda estava relativamente aquecida, nada menos que 51,4% dos prefeitos de São Paulo tiveram suas contas rejeitadas em parecer prévio pelo Tribunal de Contas do Estado. Foi um recorde na história paulista e, não por acaso, tratava-se de um ano eleitoral. Nenhum dos 335 governantes teve o mandato cassado em razão disso. O déficit orçamentário foi a razão apontada para 46% das reprovações.

O resultado orçamentário consolidado dos governos estaduais mostra um déficit somado de R$ 10 bilhões. Não há governador responsável pelas pedaladas de 2014 que esteja sob ameaça de ter a carreira política interrompida em razão disso.

A consequência normal que um governante sofre quando tem suas contas rejeitadas está no âmbito eleitoral, e não político. Pela Lei da Ficha Limpa, contas reprovadas tornam seu responsável inelegível, desde que a irregularidade seja considerada insanável e configure dolo.

A pedalada dada pela presidente Dilma Rousseff nas contas de 2014 não daria margem a discussões para impeachment em qualquer outro contexto, se não fosse a delicadeza de sua situação política atual.

Caso Eduardo Cunha queira lançar mão desta carta para exercitar um arriscado jogo de tornar o ambiente ainda mais tenso, como se isso fosse possível, não é absurdo supor que a tramitação do pedido poderia ser arbitrada pelo Supremo Tribunal Federal, no que seria o coroamento da judicialização da política. Mas a denúncia de Janot contra o deputado colocou sobre a mesa o debate sobre outro tipo de afastamento, inédito na história da República.

A contundência da acusação de Janot, particularmente quando se pede que Cunha devolva US$ 80 milhões aos cofres públicos, e o relaciona como sócio oculto do operador Fernando Baiano, ultrapassa tudo o que já se esboçou para justificar um impeachment presidencial na atualidade. A apresentação da peça contra o senador Fernando Collor no mesmo dia é todo um símbolo.

Se aceita pelo Supremo Tribunal Federal, a denúncia de Janot se converte em ação penal e Cunha torna-se réu, algo que jamais se passou com o presidente de uma casa legislativa. Poderá, neste caso, o presidente da Câmara permanecer no cargo, ainda que esta seja a vontade de seus pares? E, ainda que permaneça e conduza um processo de impeachment, como poderá evitar o seu próprio derretimento?

Uma representação contra Dilma tendo como base a provável rejeição de suas contas, com a Câmara presidida por Cunha, será uma iniciativa de bases claramente frágeis, que, se avançar, deixa estabelecido apenas um fato: busca-se um pretexto para se pôr termo a um governo que perdeu a razão de existir, que se dissociou da base social que o elegeu e do projeto de poder que antes o sustentava politicamente. É a Constituição que ampara Dilma, o que não é pouco, mas não é tudo.

Muito está se falando da entrevista que Ulysses Guimarães deu ao programa "Jô Soares" em 21 de setembro de 1992, oito dias antes do impeachment. A gravação, disponível na internet, foi relembrada nos últimos dias pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e outros expoentes tucanos.

FHC citou o trecho em que Ulysses disse que a dimensão de uma eleição é menor que a de um plebiscito e que, no caso da continuidade ou não do mandato de Fernando Collor, a praça pública era a urna.

Na mesma entrevista, entretanto Ulysses colocou bastante ênfase sobre a importância do jogo parlamentar. "Nós temos número na comissão. Nós temos número no plenário. Na secular Inglaterra se diz que quem tem número, pode tudo. Menos transformar homem em mulher e mulher em homem", disse. E ainda reforçou: "É muito importante o buzinaço, é importantíssimo o Anhangabaú, mas o que é importante mesmo é o corpo a corpo que vamos fazer para botar estes cavalheiros para votar no dia 29", afirmou.

É esta outra debilidade dos que desejam interromper o mandato de Dilma: não há número, sem a adesão de um PMDB que está ao mesmo tempo na linha de sucessão e de tiro, entre Michel Temer e Eduardo Cunha.

Em 1992, a Câmara era presidida pelo pemedebista Ibsen Pinheiro, fundamental para definir certos ritos que selaram a sorte de Collor, como o voto dos deputados por chamada nominal, por exemplo. Ibsen foi cassado menos de dois anos depois, pelo seu envolvimento no escândalo do Orçamento, mas nenhuma ameaça pairava sobre seu horizonte quando comandou o impeachment há 23 anos.

Na ocasião da votação, Ibsen contrariou a praxe do presidente da sessão se abster e votou a favor do impeachment. "O que o povo quer, essa Casa também quer", disse o então presidente da Câmara. Sob a mira da Justiça, Cunha poderá ter o mesmo desembaraço?

Para a bancada do PSDB na Câmara e no Senado, apoiar uma bandeira popular é uma opção sem riscos, o que não é o caso do governador Geraldo Alckmin, um presidenciável que só tem a perder com uma eventual ascensão de Michel Temer à presidência. O avanço da discussão pelo impeachment ou pela renúncia dentro do PSDB mostra que Alckmin está no momento em minoria dentro da sigla.

O PSDB seguirá adiante, em busca de algum vínculo com as ruas, na expectativa de que o PMDB veja no impeachment de Dilma uma perspectiva para se salvar. As primeiras avaliações que chegam da Câmara apontam que também faltam votos para se acreditar em um afastamento de Cunha.

Com o PMDB também sangrando, a equação para o impeachment de Dilma se torna ainda mais complexa. Consta que Ulysses, articulador do impeachment de 1992, gostava de citar uma frase de Goethe que indica como o receio em relação ao futuro pode imobilizar o presente: "mais difícil que matar o monstro é remover os seus destroços".

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