segunda-feira, 20 de julho de 2015

Marcos Nobre - Conservadorismo com sutilezas

- Valor Econômico

• País encontra-se dividido em questões polêmicas

A farra do boi que marcou a atividade do Congresso no primeiro semestre se encerrou. Nada indica que vá se repetir no segundo semestre. Os lances de cabo de guerra e as chantagens vão continuar, evidentemente. Mas já não é mais necessário promover um show pirotécnico para tentar desviar a atenção do que realmente importa para o mundo da política oficial. Aos trancos e muitos barrancos, foram aprovados o ajuste fiscal e o financiamento privado de campanhas eleitorais. A partir de agora, a Operação Lava-Jato vai tomar conta do noticiário.

Nem por isso se deve perder a oportunidade de tirar lições desse período de montanha-russa parlamentar, especialmente na discussão de temas de sociedade polêmicos, como é o caso da redução da maioridade penal. Desde a eleição de 2014, um bordão antigo reapareceu e ganhou especial destaque nos últimos tempos: a população brasileira seria conservadora. Um indício estaria nas pesquisas de opinião sobre temas polêmicos. A prova irrefutável estaria na composição do atual Congresso, que seria um espelho desse conservadorismo de fundo.

De acordo com as últimas pesquisas realizadas pelo Datafolha, a maioria se mostra favorável à aceitação do homossexualismo, contra a pena de morte e a posse de armas, entende que a pobreza decorre da falta de oportunidades iguais. Em termos percentuais, há uma divisão entre quem se identifica como de direita ou como de esquerda. As pesquisas indicam ainda que há uma maioria favorável à redução da maioridade penal e à proibição do uso de drogas, que entende que a criminalidade é causada pela maldade dos indivíduos e que considera que acreditar em Deus torna as pessoas melhores.

Como enxergar em uma tal divisão de opiniões a confirmação irrefutável de um conservadorismo de base? Quando se olha para pesquisas como essas, o máximo que se pode razoavelmente dizer é que o país se encontra dividido em questões polêmicas, variando conforme o tema em disputa. É verdade que se pode definir conservadorismo de outras maneiras, ou mesmo questionar a metodologia das pesquisas de opinião. Mas é de um jeito bem pouco afeito a sutilezas que o assunto tem sido tratado no debate público.

Claro que falar em falta de sutileza já é um elogio no caso do conservador tipo pitbull. Não há como discutir com alguém que coloca uma questão difícil como a da redução da maioridade penal em termos de uma escolha entre ver o próprio pai assassinado em pleno dia em praça pública ou adotar a pena de morte para o adolescente perigoso que poderia fazer isso. O desafio aí é não cair na armadilha de aceitar uma disputa política nesses termos.

Mas uma real falta de atenção às sutilezas afeta muitas vezes o anticonservadorismo militante. Não é razoável afirmar que uma mesma pessoa seja consistentemente conservadora a respeito de todos os temas. Basta olhar as pesquisas sobre temas polêmicos para chegar a essa conclusão. E, no entanto, ao encontrar alguém favorável a uma medida conservadora, a reação de quem a combate é, no mais das vezes, de fixar automaticamente essa pessoa como conservadora em todas as frentes. Toma a parte pelo todo, rotula, perde a complexidade de cada posição política particular. E faz saltar pontes que poderiam permitir uma aliança em relação a outros temas que dividem a sociedade, nos quais a posição dessa mesma pessoa pode ser muito diferente.

É como se houvesse um impedimento lógico: alguém que se considera de esquerda não pode ser ao mesmo tempo a favor da redução da maioridade penal, por exemplo. E, no entanto, se as pesquisas estão certas, não são poucas as pessoas que defendem simultaneamente posições como essas, contraditórias de um ponto de vista idealizado. Será mesmo o caso de idealizar a política dessa maneira, condenando sem apelação tanta gente aos muros do conservadorismo por suposto crime de contradição?

Não bastasse isso, a mesma operação que toma uma única opinião como indicadora da natureza de todo o sistema de opiniões de uma pessoa é estendida para abarcar a maioria da população. Se as pesquisas indicam que a população brasileira é majoritariamente conservadora a respeito de um determinado tema, ela passa a ser considerada conservadora em seu todo. Não por acaso, a estratégia política do conservadorismo militante consiste em tentar convencer as pessoas de que elas são de fato essencialmente, integralmente conservadoras.

Chamar a atenção para essas operações da disputa política não significa ignorar a brutalidade da violência cotidiana no país nem esquecer que existe de fato uma agenda conservadora em processo de organização e de implementação. Significa apenas lembrar que não existe algo como uma posição conservadora unitária e monolítica, muito menos claramente majoritária. Afirmar sem mais que a população brasileira é conservadora apenas serve ao conservadorismo militante.

Questionado no mês de abril sobre o caráter conservador dos projetos apresentados pelos parlamentares, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha afirmou: "Se vocês consideram conservadores e a maioria colocou a pauta e aprovou, é porque a maioria é que é conservadora". Ao comentar a decisão recente do Supremo Tribunal Federal que negou liminar para suspender a votação da redução da maioridade penal, o mesmo deputado sentenciou: "Continuarei lutando para que a vontade da maioria da população prevaleça".

A alucinada multiplicação de temas polêmicos para discussão em curtíssimo espaço de tempo tem o sentido profundamente antidemocrático de bloquear qualquer real discussão. A democracia precisa de tempo. E, sobretudo, depende da aposta na capacidade de mudar a si próprio e aos outros. É isso o que o conservadorismo de tipo Eduardo Cunha mais teme: que haja tempo e oportunidade para a reflexão e o debate, que as pessoas possam reconsiderar suas opiniões e atitudes. As pessoas são muito mais complexas do que a opinião que têm sobre um tema polêmico específico. Desmontar o mito de uma suposta natureza conservadora da população brasileira começa por levar a sério essa complexidade.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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