domingo, 14 de junho de 2015

Ferreira Gullar - A crítica de arte hoje

• A arte contemporânea não pode ser analisada. Talvez por isso, a crítica de arte militante não exista mais

- Folha de S. Paulo / Ilustrada

Como fica a atividade do crítico de arte, hoje, quando a expressão predominante no terreno das artes plásticas, intitulada arte contemporânea, não mais se vale da linguagem artística (pictórica, escultórica, gráfica) e, muitas vezes, nem do ato de fazer a obra?

Pertenço a uma geração de críticos herdeira de personalidades notáveis da moderna crítica de arte, como Lionello Venturi, Giulio Carlo Argan, Herbert Read e o brasileiro Mário Pedrosa, entre muitos outros, que contribuíram para a compreensão da criação artística, tanto da atualidade quanto do passado.

A nossa geração enfrentaria, em função das mudanças ocorridas no terreno das artes, a crise que inevitavelmente se estendeu ao plano da reflexão estética.

Quem teve, como eu, a sorte de viver e atuar nos anos de 1950 a 1960, lembra da importância que tinha, naquela época, a discussão dos problemas estéticos, das novas ideias e das propostas que eram formuladas então.

A consequência dessa efervescência cultural se refletia no interesse da imprensa pelo que acontecia no terreno das artes plásticas e que se concretizava nas colunas de noticiário e apreciação crítica, presentes em todos os jornais e revistas importantes.

Mário Pedrosa, Flávio de Aquino, Mário Barata, Antônio Bento e Quirino Campofiorito, entre outros, assinavam aquelas colunas.

Foi na década de 1950 que se deu a grande ruptura na arte brasileira com o surgimento do concretismo.

Tratava-se de fato de duas concepções artísticas antagônicas: de um lado, a arte figurativa, representada por Portinari, Di Cavalcanti, Guignard, Pancetti --de uma forma ou de outra continuadores do modernismo brasileiro, essencialmente figurativo--, de outro, uma arte geométrica, despojada de qualquer referência do mundo real e às expressões de caráter regional ou nacional.

Esse debate incendiou os meios de comunicação, com a publicação de entrevistas e artigos polêmicos. Tudo isso resultava naturalmente do trabalho inovador dos artistas, que se estenderia por três décadas, pelo menos, ampliadas com o surgimento do movimento neoconcreto, que veio introduzir novas propostas inusitadas, já não apenas no plano nacional, mas também no plano internacional.

Dentro do próprio neoconcretismo se deu uma diferenciação --sem que isso fosse explicitado teoricamente-- entre o que produziam Franz Weissmann, Amílcar de Castro, Aluísio Carvão, Lygia Clark e Hélio Oiticica, que levaram mais adiante a ruptura com a linguagem geométrica e a própria pintura. Esse novo caminho, que a própria Lygia afirmava não ser mais arte, antecipou, de certo modo, em alguns aspectos, o que seria chamado mais tarde de arte contemporânea.

Mas havia uma diferença: é que os trabalhos da Lygia e do Hélio, embora rompendo com a linguagem então adotada pelos artistas, eram produtos de seu fazer e de sua criatividade. Não eram "ready-mades".

Lygia, por entender que aqueles trabalhos não cabiam mais no conceito de arte, atribui-lhes uma outra função --a função terapêutica, de libertação do superego. Naturalmente, tendo esse propósito, escapava ao juízo da crítica de arte.

Já as manifestações da arte contemporânea, que não se atribuem aquela função, se também escapam ao juízo da crítica é por outra razão: pelo fato de que não elaboram uma linguagem, pois partem do princípio duchampiano de que "será arte tudo o que eu disser que é arte".

Se é verdade que o importante é a obra de arte, muito mais que a crítica em si, deve-se admitir que ela integra o processo criador, uma vez que o próprio artista a exerce enquanto cria.

A crítica realizada pelo crítico é, certamente, diferente, mas faz parte do processo artístico, na relação da obra com o espectador e como fator de inserção da obra no contexto cultural.

Há de se considerar, porém, que para que isso aconteça é necessário que a obra exista enquanto linguagem, objetivamente apreendida e avaliada.

Uma arte que não se rege por qualquer princípio, e não é fruto do trabalho elaborador de uma linguagem, não pode ser analisada e nem ser objeto de qualquer juízo de valor, ou seja, de qualquer juízo crítico. Talvez por isso, a crítica militante não exista mais.

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