segunda-feira, 11 de maio de 2015

Alberto Aggio* - Impeachment fático

- O Estado de S. Paulo

A esta altura do campeonato não há muito mais a acrescentar: temos um governo infeliz que, em tudo o que faz, vem gerando, ao contrário do que promete, mais infelicidade. Os pífios resultados econômicos somados à inflação e à recessão, a precariedade dos serviços públicos e de infraestrutura, a insegurança social e as denúncias de corrupção desenfreada agridem o cotidiano dos cidadãos, causando apreensões e temores crescentes.

No plano político, trata-se de um governo que, numa atitude esquizofrênica, abandona a si mesmo, isto é, abandona o que havia sido no primeiro mandato e o que se propunha a ser na campanha eleitoral vitoriosa, e ao mesmo tempo resiste a desvelar as razões reais desse movimento. Não dá o que dava nem o que prometeu porque tem de dar conta da sangria que provocou nos gastos públicos, sem ter lastro para isso. Essa é a razão do chamado “estelionato eleitoral”.

O programa econômico do primeiro governo Dilma, que tinha como vetor o desenvolvimentismo à base de um capitalismo de Estado, é agora deixado de lado ao se adotar no segundo mandato uma estratégia inversa, pautada pela recuperação e pelo controle das contas públicas, o que implica cortes na área social, e pela diminuição da intervenção do Estado na atividade econômica. Tudo isso afeta negativamente a vida dos trabalhadores e das empresas.

Seus efeitos colaterais são conhecidos e já são sentidos pela maioria: inflação, recessão e desemprego. Na prática, como é sobejamente reconhecido, o governo mudou radicalmente, mas se recusa a admitir a essência dessa mudança ao adotar um discurso inverossímil e cheio de subterfúgios para justificá-la. Pior do que isso, não se revela capaz de construir um discurso convincente para validar o que diz querer realizar no segundo mandato. O problema não é, portanto, de comunicação ou marketing, e sim de política.

Por se recusar a deixar para trás o governo que realizou e assumir a mudança com clareza e determinação, Dilma foi rapidamente perdendo prestígio e credibilidade, não apenas na chamada classe política, mas perante o eleitorado em seu conjunto, o de oposição e aquele que a consagrou nas urnas. Além do acentuado declínio nas pesquisas de opinião, o resultado pode ser contabilizado negativamente em duas situações que primam pela evidência. No 1.º de Maio deste ano a presidente não participou pessoalmente de nenhum ato comemorativo do Dia do Trabalho nem sequer pôde ir à televisão falar com os brasileiros, especialmente os trabalhadores, e fazer um balanço das iniciativas governamentais em seu benefício. Temeu os apupos e as vaias, mas também os já recorrentes “panelaços”. Teve de se contentar com as redes sociais. Tal escolha foi criticada por líderes do seu próprio partido e desqualificada como “ridícula” pela presidência de um dos Poderes da República.

Mas antes disso, por não assumir a mudança empreendida em seu segundo governo, suas causas e implicações, a presidente assumiu como estratégia pessoal um afastamento quase que integral do centro da cena política, no que ela tem de mais sensível: a economia e a política. A imagem que fica é a de que a política econômica não a representa, delegada que foi a um prócer das finanças nacionais declaradamente crítico da condução da economia no primeiro mandato.

No plano político, depois de intenso bate-cabeças, a coordenação do governo deslocou-se, como última tábua de salvação, para o vice-presidente da República, homem de outro partido, que nem sequer participava do núcleo dirigente no mandato anterior, ocupante do mesmo posto institucional de agora. Dilma é, assim, uma presidente que não tem nem a política econômica nem a articulação política sob seu inteiro controle.

Até cumprir os cem dias do segundo mandato, Dilma foi uma presidente ziguezagueante que ora atuava de acordo com a base de apoio sobrevivente, ora se afastava dela, sem conquistar com isso novos aliados, nem mesmo ocasionais. Uma situação insustentável, que não poderia continuar em nenhuma hipótese, daí a transferência da articulação política para a Vice-Presidência.

Nas ruas, uma população cada vez mais bem informada rompeu a barreira da inércia e passou a manifestar sua indignação com foco bastante definido: a consigna “Fora Dilma” pedia, enfim, o impeachment da presidente. Manifestações massivas irromperam pelo País e coincidiram com a crescente fragilização política do governo. Como em política não há espaço vazio e o governo que acabava de se instalar mostrava não poucos sinais de desorientação, deu-se uma incisiva retomada da iniciativa parlamentar, deslocando a iniciativa política para o Congresso Nacional. Por conta desse movimento, houve quem falasse no estabelecimento de um “parlamentarismo branco”.

Mas não foi precisamente isso o que veio a ocorrer. Ao arrefecer a campanha de massas pelo impeachment, fica-se com a impressão de que o País passa por uma espécie de impeachment fático, inaugurando uma situação insólita em que a presidente, voluntariamente, mas a contragosto, “se retira” (uma espécie de aceitação a meias do seu impedimento), ainda que normativamente continue a exercer seu mandato. Ao mesmo tempo, porém, admite (porque não é mais capaz de dirigir) que o fiel do governo seja o Congresso, sob a articulação do vice-presidente. A presidente Dilma, de fato, afastou-se do comando do País!

Nessa configuração esdrúxula, de incompletude e suspensão, instala-se a incerteza e um jogo em que o controle do tempo é determinante para todos os atores, já que não se forma de imediato uma nova coalizão governante. Tal arranjo garante, contudo, condições de sobrevida ao governo Dilma, na expectativa de que possa desempenhar algum papel na sua sucessão, se conseguir retomar o controle do centro da cena política.

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* Historiador, é professor titular da Unesp

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