domingo, 5 de abril de 2015

Cacá Diegues - Primeiro as coisas primeiras

• Não se ouve mais falar de velhas nomenclaturas abrangentes de partidos clássicos como os comunistas, liberais, socialistas, nacionalistas etc.

- O Globo

A democracia não é apenas um regime eleitoral. Conforme o tempo vai passando e a história nos surpreende com seus acasos e fatos inesperados, aprendemos que a democracia é, antes de tudo, o insubstituível sistema de vida em comum mais próximo da natureza humana. E ele pode ser praticado sob diferentes convenções políticas. A democracia é, antes de tudo, um regime de liberdade e justiça, em que todos nós, situação ou oposição aos governantes, devemos nos sentir representados.

Como não são as leis que fazem os costumes, e sim os costumes que fazem as leis, às vezes é preciso ajustar nosso tempo a novas ideias e acontecimentos, sem abalar certos princípios fundamentais. Por exemplo, o que está em questão hoje, em quase todo o mundo, é a crise da democracia representativa, e não a própria democracia.

A representação democrática depende dos partidos políticos, formados em torno de ideologias ou programas para o país em que funcionam. Mas os partidos começaram a perder seu sentido, deixando de corresponder às suas origens e deixando de representar seus eleitores. Em vista do que propõem e de como agem, não haveria mais razão para que existam.

Surgem, então, organizações políticas, até aqui inexistentes ou marginais às tradições partidárias, em que os princípios genéricos, à esquerda ou à direita, são menos importantes do que projetos pragmáticos, específicos e imediatos. Os argumentos combativos desses novos coletivos orgânicos e sem retórica baseiam-se, quase sempre, na falta de representatividade dos políticos, daqueles que, segundo esses grupos, já não representam ninguém.

Com a vitória retumbante do Syriza de Alexis Tsipras e o entusiasmo provocado pelo projeto grego contra a “austeridade”, essas organizações “marginais” ganharam ânimo e novos eleitores em toda a Europa. Na França, à parte o fenômeno Jean-Luc Mélenchon, vários micropartidos dessa natureza já se fizeram representar nas útimas eleições municipais. Em Portugal, o movimento Nós Cidadãos acaba de entregar um número suficiente de assinaturas de eleitores que lhe permite concorrer às próximas eleições. Na Espanha, duas novas agremiações, o Podemos e o Cidadãos, disputam a terceira força nas eleições (Alberto Rivera, catalão de 35 anos, líder do Cidadãos, é famoso por ter posado nu para a campanha eleitoral em Barcelona). Até na Índia, o novo e alternativo Partido do Homem Comum, cujo símbolo é uma vassoura, saiu-se vitorioso em Nova Délhi, capital do país, elegendo ali seu principal dirigente, Aam Aadmi. Como se vê, não se ouve mais falar de velhas nomenclaturas abrangentes de partidos clássicos como os comunistas, liberais, socialistas, nacionalistas etc.

No Brasil, ainda não emergiu nada parecido, mas a insatisfação com os partidos convencionais é evidente. Primeiro porque nenhum deles costuma cumprir suas promessas eleitorais (quando as têm). Mais do que isso, quase todos se enlamearam nas sucessivas e escandalosas revelações de corrupção. Mesmo um partido tão comprometido com causas sociais e éticas como o PT, esperança de tantos brasileiros no alvorecer de nossa democracia recente, acabou por se desmoralizar com seus sucessivos erros e malfeitos.

A cada governo, quando se nomeiam ministros e dirigentes de agências estatais, a disputa pública é baseada nos valores dos orçamentos sob suas ordens. A qualidade dos partidários à frente dos cargos, o anúncio de seus projetos para o mandato, sua repercussão popular são inexistentes ou inexpressivos — o que importa são os valores dos recursos sob controle de cada partido; o mais poderoso será sempre aquele que controla orçamentos maiores.

Embora não tenham produzido consequências no tempo, as manifestações populares de junho de 2013 mostraram a vocação do país para uma nova etapa de nosso desenvolvimento democrático. Apesar da discriminação e do ódio revelados nas manifestações do último março, alguma coisa ficou no ar, como se de repente tivéssemos percebido que o bicho fedorento não está mais na sala e a vida talvez possa ser diferente (a internet tem alguma coisa a ver com isso e com o futuro, mas essa é outra história).

O que provoca essas idas tempestivas às ruas é que ninguém se sente mais representado por ninguém. E aí a culpa não é só do eleitor, nem mesmo só do eleito. A sensação incômoda é a de que as primeiras coisas não estão vindo em primeiro lugar, como queria o poeta; e isso está se transformando em um comportamento nacional.

Semana passada, por exemplo, a presidente Dilma fez um discurso sobre liberdade de expressão e liberdade de imprensa, um discurso radical, brilhante e comovente que, independentemente de quem o proferiu, podia representar um avanço de nossa democracia se fosse reconhecido por todos. Mas a “base aliada” não lhe deu importância, a oposição ignorou-o e ficou tudo por isso mesmo. Os jornais enviaram o discurso às suas páginas interiores, com o mesmo destaque dado a mais uma do Renan ou do Cunha, preferiram o assombro diante do déficit do governo central e de outros frios números indicativos de nossa miséria econômica. E quem deve cuidar de nossa miséria política?

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Cacá Diegues é cineasta

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