domingo, 22 de fevereiro de 2015

O que ele sabe é dinamite pura

• Ricardo Pessoa, presidente da UTC, preso na PF em Curitiba, quer fazer delação premiada e contar tudo. As manobras para convencê-lo do contrário seguem o padrão do ciclo petista no poder: o ministro da Justiça vira advogado de defesa do governo e tenta evitar que os escândalos atinjam o Planalto.

As revelações de Ricardo Pessoa
• O esquema de cobrança de propina na Petrobras começou em 2003, no governo Lula, organizado pelo então tesoureiro do PT Delúbio Soares

• A UTC financiou clandestinamente as campanhas do ministro Jaques Wagner ao governo da Bahia em 2006 e 2010

• A empreiteira ajudou o ex-ministro José Dirceu a pagar despesas pessoais a partir de simulação de contratos de consultoria

• Em 2014, a campanha de Dilma Rousseff e o PT receberam da empreiteira 30 milhões de reais desviados da Petrobras

- Daniel Pereira e Robson Bonin – Veja

Muito se discute sobre as motivações que um empreiteiro há três meses preso na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba teria para contar o que sabe — não por ter ouvido falar, mas por ter participado dos eventos que está pronto a levar ao conhecimento da Justiça. O engenheiro baiano Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC, tem várias. A primeira, evidente, é não ser sentenciado pela acusação de montar um cartel de empreiteiras destinado a fraudar licitações na Petrobras, quando a festa pagã de que ele tomou parte na estatal foi organizada pelo PT, o partido do governo. A segunda, também óbvia, é atrair para o seu martírio o maior grupo de notáveis da política que ele sabe ter se beneficiado das propinas na Petrobras e, assim, juntos, ficarem maiores do que o abismo — salvando-se todos. A terceira, mais subjetiva, é, atormentado pela ideia de que tudo o que ele sabe venha a ficar escondido, deixar registrado para a posteridade o funcionamento do esquema de corrupção na Petrobras feito com fins eleitorais. Antes dono de um porte imponente e até ameaçador, Pessoa está magro e abatido. As acusações de corrupção ativa, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa que pesam sobre ele poderiam ser atenuadas caso pudesse contar, em delação premiada, quem na hierarquia política do país foi ora sócio, ora mentor dos avanços sobre os cofres da Petrobras.

"Vou pegar de noventa a 180 anos de prisão", vem dizendo Ricardo Pessoa a quem consegue visitá-lo na carceragem. Foi com esse espírito que fez chegar a VEJA um resumo do que está pronto a revelar à Justiça caso seu pedido de delação premiada seja aceito. A negociação com os procuradores federais sobre isso não caminha. Pessoa reclama que os procuradores querem que ele fale de corrupção em outras estatais cuja realidade ele diz desconhecer por não ter negócios com elas. Já os procuradores desconfiam que Pessoa está sonegando informações úteis para a investigação. O impasse só favorece o governo, pois o que Pessoa tem a dizer coloca o Palácio do Planalto de pé na areia do mar de escândalos.

Sobre o ministro da justiça
Pessoa recebeu de seus advogados a informação de que partiu de José Eduardo Cardozo a iniciativa de procurá-los para uma conversa que foi relatada a ele como tentativa de evitar sua delação premiada.

Propinas
O empreiteiro quer contar à Justiça que em 2014 deu 30 milhões de reais desviados da Petrobras aos candidatos do PT. A maior parte do valor percorreu caminhos legais e foi declarada como doação eleitoral. Em depoimentos às autoridades, o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa e o doleiro Alberto Youssef já haviam declarado que o dinheiro roubado dos cofres da companhia era transferido ao PT e aliados, como PMDB e PP, por meio de doações legais. A descrição do mecanismo que Pessoa quer relatar não é nova. Mesmo assim, se repetida aos procuradores, tem potencial para fechar um elo da cadeia criminosa. Por um motivo crucial. Costa e Youssef eram operadores do esquema, conheciam o caminho do dinheiro, mas não o desembolsavam. Já Pessoa, caso conte ao Ministério Público o que narrou reservadamente, será o pri-h meiro grande empreiteiro a confessar o pagamento de propina — com a autoridade, repita-se, de quem atuou nesse campo por mais de uma década.

Alianças antigas
Fornecedora da Petrobras, a UTC cresceu no governo Lula. Pessoa era amigo do ex-presidente, com quem se encontrava sem agenda específica. A empreiteira contratou Lula para dar uma palestra aos seus funcionários. O clima era de confraternização. Não sem razão. A pessoas próximas, o empresário confidenciou que a UTC pagava propina ao PT. em troca de contratos e aditivos na Petrobras, desde a chegada do partido ao poder, em 2003. No início, a ponte com a direção petista era o então tesoureiro Delúbio Soares, que deixou a operação depois de ser flagrado no escândalo do mensalão. Segundo Pessoa, o esquema de corrupção sempre contou com o conhecimento do ex-presidente da Petrobras José Sergio Gabrielli e financiou diretamente as campanhas, entre outros, do atual ministro da Defesa, Jaques Wagner, ao governo da Bahia em 2006 e 2010. Wagner era um dos padrinhos da indicação de Gabrielli ao comando da companhia. Gabrielli, por sua vez, tentou se utilizar do posto para pavimentar sua candidatura à sucessão de Wagner no estado. Não deu certo. Coube ao petista Rui Costa, também com o apoio financeiro da UTC, vencer a eleição para o governo em 2014.

Pessoa e as pessoas... Que devem... Temê-lo
Pessoa garantiu a interlocutores que a UTC também fez doações à campanha de Costa utilizando recursos obtidos de contratos superfaturados.

Sentindo-se traído
Com mais de uma década de parceria com o PT, Ricardo Pessoa se ressente da falta de solidariedade dos políticos que, garante ele, receberam ajuda financeira em campanhas. Não se sabe o que esses bolsos que conheceram o dinheiro da UTC podem fazer por Pessoa agora — a não ser morrer politicamente de braços dados com ele. "O Ricardo pode destruir o Wagner", diz um auxiliar do empreiteiro. Tome-se o exemplo do mensaleiro José Dirceu, a quem Ricardo Pessoa diz ter dado 2,3 milhões de reais entre 2011 e 2012 a título de consultoria, rubrica, aliás, que nos dias de hoje é quase sinônimo de propina. Pessoa conta que Dirceu precisava de dinheiro para bancar despesas pessoais. Qualquer ajuda de Dirceu agora seria a do náufrago tentando salvar o afogado.

A revelação
Ao tentar explicar o envolvimento do tesoureiro João Vaccari no escândalo, PAULO OKAMOTTO, diretor do Instituto Lula, foi de uma sinceridade desconcertante: "As empresas estão ganhando dinheiro. Ninguém precisa corromper ninguém. Funciona assim: "Você está ganhando dinheiro? Estou. Você pode dar um pouquinho do seu lucro para o PT? Posso, não posso." É o que espero que ele tenha feito".

O problema Dilma
De outro velho camarada de propinoduto, João Vaccari Neto, tesoureiro do PT, o empreiteiro Ricardo Pessoa pode esperar o que em termos de ajuda? Pessoa lembra que se considera amigo de Vaccari. Diz-se pronto a contar à Justiça que a pedido de Vaccari colocou 10 milhões de reais na campanha à reeleição da presidente Dilma Rousseff. Esse é o ponto fulcral de todas as forças que giram em tomo de uma eventual deposição de Ricardo Pessoa em delação premiada. Perante a Justiça, o empreiteiro teria de detalhar se o dinheiro que ele deu a Vaccari foi obtido ilegalmente, como sugere. E, sendo dinheiro ilegal, mesmo que doado dentro das regras eleitorais, a presidente Dilma terá mais um sério problema. Obviamente, Ricardo Pessoa terá de exibir provas de tudo o que afirma. O lado recebedor poderá alegar que Vaccari pode até ter pedido dinheiro a Pessoa para a campanha de Dilma, mas, por alguma razão, os recursos foram destinados aos cofres de outras candidaturas. O que Pessoa afirma é grave e deveria ser bastante para que a Justiça aceite sua delação premiada — mas é insuficiente para embasar um processo eleitoral mais agudo contra a presidente. Do ponto de vista exclusivo da Lei Eleitoral, o candidato é responsável direto pela sanidade das finanças de sua campanha, mas é discutível se cabe a ele exigir dos doadores provas de que suas contribuições foram obtidas honestamente.

Conforme VEJA revelou, outra fatia da doação eleitoral da UTC, vinda de propinas obtidas em contratos da Petrobras, foi negociada diretamente com Edinho Silva, tesoureiro da campanha da presidente-candidata. Duas testemunhas disseram a VEJA ter presenciado Luciano Coutinho, presidente do BNDES, informar a diretores da UTC que a empresa seria procurada por Edinho com o objetivo de obter doações adicionais à campanha da presidente. Luciano Coutinho negou ter feito qualquer pedido ou insinuação nesse sentido a diretores da UTC com quem se reuniu para tratar da continuação das obras do Aeroporto de Viracopos, em parte financiadas pelo banco de fomento estatal.

Canal direto
"O PT usou a Petrobras para financiar seu projeto de poder", resume um executivo da UTC que fala frequentemente com Pessoa. É disso que se trata. A esta altura, se Pessoa quer desabafar ou se vingar dos parceiros políticos de uma década, se manda recados ou faz ameaças, não tem tanta relevância. O que importa é se os promotores e a Justiça vão deixar escapar essa oportunidade de ouvir o que o empreiteiro tem a dizer em delação premiada. Em um de seus bilhetes manuscritos na cadeia, Ricardo Pessoa escreveu: "Edinho Silva está preocupadíssimo". Em outro registrou: "Todas as empreiteiras acusadas do esquema criminoso da Operação Lava-Jato doaram para a campanha de Dilma".

O juiz Sergio Moro e os procuradores federais não têm foro para tratar das repercussões políticas dos fatos revelados pelos acusados da Operação Lava-Jato. Mas isso não pode ser motivo para deixar de ouvir oficialmente o empreiteiro. Mas, por lidarem com uma questão altamente complexa e com interesses monumentais e distintos, Moro e os procuradores têm razões de sobra para ser cuidadosos. Antes de começar a deixar seus desabafos virem a público, o chefão da UTC mandou recados diretos ao PT. A UTC garante ter 600 milhões de reais a receber por serviços já prestados à Petrobras e vem pressionando os petistas amigos a conseguir a liberação do dinheiro. A cobrança chegou, entre outros, a Paulo Okamotto, braço-direito do ex-presidente Lula e bombeiro escalado para tentar apagar os incêndios que mais ameaçam o PT.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Okamotto confirmou a conversa com representantes da UTC. Ao ser questionado sobre a acusação de que João Vaccari Netto recolhia propina na Petrobras, Okamotto cometeu um sincericídio histórico: "Funciona assim: "Você está ganhando dinheiro? Estou. Você pode dar um pouquinho do seu lucro para o PT? Posso, não posso". É o que espero que ele tenha feito". Mesmo depois da conversa com Okamotto, a UTC não recebeu os 600 milhões a que teria direito. O calote e os três meses de prisão de Ricardo Pessoa acirraram ainda mais os ânimos do empresário. Foi isso que levou o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a pedir a um dos advogados do escritório que representa a UTC que o dono da construtora não feche o acordo de delação premiada com o Ministério Público.

Cardozo insistiu, na semana passada, na versão de que não tratou dos rumos da Lava-Jato numa conversa com o advogado Sérgio Renault. O ministro reafirmou que, como bons amigos, tiveram apenas um bate-papo sobre assuntos fortuitos. Executivos da UTC responsáveis pela contratação do escritório do qual Renault é sócio confirmam que Cardozo pediu a Pessoa que não formalizasse o acordo de delação premiada. "O ministro pediu que não usássemos um instrumento legítimo de defesa", diz um executivo da UTC. A reunião, que não consta da agenda oficial, foi devidamente registrada numa agenda extraoficial, sob os cuidados de Simone Fernandes, assessora especial do ministro.

Normais aos olhos de Cardozo, seus encontros foram vistos como transgressão pela Associação dos Magistrados Brasileiros, por Joaquim Barbosa, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, e pelo próprio juiz Sergio Moro. Barbosa pediu a demissão de Cardozo; Moro descreveu os encontros como "intoleráveis". Como lembra a Carta ao Leitor desta edição de VEJA, as agruras do PT com o petrolão são fruto do mesmo pecado original que produziu o escândalo do mensalão: a ideia assombrosa de que o partido pode se servir do Estado como se fosse sua propriedade, das leis como se existissem apenas para os outros e das instituições como bombeiros de suas eternas crises.

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