quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Demétrio Magnoli - O Leviatã cambaleante

• De Geisel a Lula, o Brasil descreveu um longo círculo de reiteração do patrimonialismo

- O Globo

Os jornais separam economia e política em seções distintas. A norma reflete o princípio fundamental da economia de mercado, que traça uma fronteira entre a esfera (pública) do sistema político e a esfera (privada) do sistema econômico. No Brasil, como evidencia uma entrevista do presidente da Braskem publicada no “Estadão” (9/2), a distinção mais confunde que esclarece: o texto está no caderno de Economia, mas é um curso modular sobre a crise política em desenvolvimento.

Módulo 1: capitalismo de estado. A Braskem, maior petroquímica brasileira, tem o estatuto jurídico de empresa privada. Contudo, o segundo maior acionista da empresa é a estatal Petrobras (36%), atrás apenas da controladora, a Odebrecht (38%), cujos negócios dependem fortemente da estatal petrolífera. A teia acionária tem um significado: a indústria de base no Brasil oscila ao sabor de decisões políticas adotadas no Planalto.

Módulo 2: trajetórias do capitalismo de estado. A Odebrecht consolidou-se no Nordeste em 1961, beneficiando-se de vastos subsídios da Sudene, e converteu-se em grande empresa nacional no início da década de 1970, em virtude das relações privilegiadas entre Norberto Odebrecht e o general Ernesto Geisel, então presidente da Petrobras. Um símbolo da aliança foi a construção do edifício-sede da estatal, inaugurado em 1974, ano da ascensão de Geisel ao Planalto.

Módulo 3: modernização do capitalismo de estado. A Odebrecht começou a investir na petroquímica em 1970, mas expandiu seus negócios no setor com o programa de privatizações de FHC e os integrou na Braskem em 2002, ano da eleição presidencial de Lula. Sob o neonacionalismo lulopetista, em 2008, a Petrobras ampliou de 8,1% para 30% sua participação acionária na Braskem, possibilitando a aquisição do Grupo Ipiranga.

Módulo 4: Lula e o capitalismo de estado. A explosão de investimentos do conglomerado petroquímico foi financiado por bilionárias linhas de crédito do BNDES e pela crescente participação acionária do BNDESPar. Entre 2008 e 2013, o BNDES aportou mais de R$ 4,1 bilhões à Braskem. Emílio Odebrecht Jr. revelou-se um cientista político mais arguto que a maioria dos professores universitários da área, explicando que “o presidente Lula não tem nada de esquerda, nunca foi de esquerda”. Em 2011, na inauguração do Itaquerão, construído pela empreiteira, saudou a chegada do ex-presidente com uma sincera exclamação: “Meu chefe!”. Junto com a OAS e a Camargo Corrêa, a Odebrecht arcou com os custos de cerca de metade das viagens de Lula ao exterior entre 2011 e 2013.

Módulo 5: capitalismo de monopólio. A Petrobras figura como principal parceiro comercial da Braskem, fornecendo-lhe seu insumo básico — a nafta, um derivado do petróleo usado na fabricação de gases e resinas plásticas. A Petrobras é fornecedora exclusiva de nafta no país, e a Braskem é compradora exclusiva do produto. Um contrato com prazo de dez anos, firmado em 2009, regula as condições do fornecimento de nafta. O cenário duplamente monopolista indica que a petroquímica nacional está sujeita a um virtual colapso na hipótese de sequências desastrosas de decisões políticas do Planalto.

Módulo 6: populismo lulopetista. No primeiro mandato, Dilma Rousseff decidiu utilizar a Petrobras para corrigir as distorções inflacionárias de sua política econômica, congelando os preços dos combustíveis. A fim de proteger seu caixa, a estatal passou a usar a nafta produzida em suas refinarias na composição da gasolina — e começou a importar o insumo destinado à Braskem. Em 2013, a petroleira anunciou que repassaria à petroquímica os aumentos de custos ligados à importação da nafta, alterando os termos do contrato. A iniciativa gerou um impasse entre os parceiros monopolistas. “Não cabe a nós pagar a conta da política do combustível do governo”, reclama Carlos Fadigas, presidente da Braskem.

Módulo 7: administração de crise e crise de administração. Diante do impasse, os parceiros firmaram um aditivo de seis meses, até agosto de 2014, estendendo as condições do contrato vigente, e depois um outro, que se encerra no fim deste mês, assegurando a entrega do insumo mas deixando o preço em aberto. Algo inédito, a santa aliança do capitalismo de estado lava roupa suja em público. Fadigas: “Estou comprando matéria-prima por um preço que não sei qual é. Temos contratos com preço estabelecido; então, vendo sem saber a margem. É absurdo.”

Módulo 8: o piloto sumiu. A diretoria da Petrobras foi arrastada pela avalanche das investigações do escândalo de corrupção. No lugar de aditivos improvisados, desenhou-se o cenário onírico de um telefone que ninguém atende. Fadigas, sobre a negociação da nafta: “Está muito difícil, por causa da situação da própria Petrobras. Mas hoje, não vou dizer que está difícil porque nem temos um interlocutor na empresa.” Os investimentos já estão congelados, refletindo a incerteza generalizada sobre o futuro próximo. O risco imediato, alerta a Braskem, é a paralisação da maior parte da indústria petroquímica no país devido a uma possível interrupção no fornecimento da nafta.

Módulo 9: a república dos companheiros. O novo presidente da Petrobras acabou de assumir o posto e sua prioridade não é a nafta, mas a fabricação de um balanço auditável. Fadigas peregrinou a Brasília para solicitar uma intervenção salvadora do ministro do Desenvolvimento. Paralelamente, desconfio, Emílio Odebrecht Jr. dispara telefonemas para o “meu chefe!”, que é o chefe de todos, inclusive dos diretores demitidos e presos da Petrobras. Na república dos companheiros, os grandes negócios não são feitos na arena do mercado, mas nos meandros da política subterrânea.

Conclusão do curso: de Geisel a Lula, o Brasil descreveu um longo círculo de reiteração do patrimonialismo. Agora, contudo, o poder não dispõe do escudo protetor da ditadura.
------------------
Demétrio Magnoli é sociólogo

Um comentário:

Fernando Coelho disse...

Análise precisa e certeira.