sábado, 3 de janeiro de 2015

Maria Cristina Fernandes - A posse da ideóloga

• Dilma disputará o ideário de seu governo

- Valor Econômico

Discursos de posse se parecem na megalomania mas não são iguais. São a primeira formatação do que virá na voz de quem não se vende mais por voto. Buscam projetar uma imagem para dar permanência à legitimidade das urnas.

O discurso da presidente reeleita frustrou quem esperava o anúncio de medidas para enfrentar aquilo que ontem o empresário Jorge Gerdau definiu como uma quase inevitável recessão.

Ao assumir a necessidade de ajuste sem detalhá-lo, a presidente, com uma feição menos crispada que a de sua primeira posse, deixou claro que vai disputar o ideário em defesa de seu governo, missão que, até agora, era reivindicada por seu antecessor.

As más notícias ficarão para seus ministros. Para consumo público, Dilma abandona o powerpoint e assume a condição de ideóloga de seu governo.

No lema anunciado pela presidente, seu governo educará não apenas os brasileiros mas também os malfeitores. À frente da Educação, pela primeira vez em 12 anos, estará um ministro não petista.

Luiz Inácio Lula da Silva viu-se reduzido à quarta parte do que foi em 2011, quando recebeu 10 menções. Quatro anos atrás Dilma praticamente dividia a história do Brasil em antes e depois de Lula. Desta vez, o antecessor virou 'o mais destacado' dos militantes.

O vácuo de Lula foi preenchido pela menção à corrupção, que apareceu 10 vezes ontem. Em 2011, tivera uma única citação. A presidente passou a reivindicar para seu governo - e não para os 12 anos do PT no poder - a liderança no combate à corrupção.

Sim, pode ser um jogo combinado a indicar que é sua a responsabilidade de tentar salvar o quarto mandato do partido do enxovalhamento.

Dilma responde à acusação de estelionato eleitoral, pelo arrocho que está por vir, inflando-se no poder. É um movimento inverso àquele que, em 1999, foi protagonizado por um outro presidente acusado de ter enganado o eleitor.

Da primeira vez que tomara posse, Fernando Henrique Cardoso abusara da primeira pessoa. Nenhum de seus sucessores repetiria a façanha de usar o pronome 'eu' dez vezes numa inauguração de mandato. Ontem e em 2011, Dilma citou a si mesma quatro vezes.

Em 1999, mais breve e menos voluntarista - com um único 'eu' - FH cedeu lugar a uma dosada humildade: "Tenho mais experiência, pelo muito que pude aprender tanto dos acertos, quanto dos erros, de meu primeiro mandato".

Naquele ano, a corrupção, desfraldada pela aprovação, com compra de votos, da emenda da reeleição, sumiu do discurso.

Na posse daquele governo que lhe corroeu a popularidade, o 'desenvolvimento', citado dez vezes em 1995, desapareceu. Ao triplicar as menções a desigualdade, distribuição de renda e trabalhadores evidenciou a preocupação com o legado.

No discurso de 2011 Dilma ainda seguia à risca o figurino que lhe fora traçado pelo antecessor: o de mãe e mulher que pretendia dedicar ao povo o mesmo carinho reservado à família.

Ontem Dilma avançou no terreno lulista ao reivindicar uma identidade que extrapola o gênero. Disse ter estado algumas vezes perto da morte e pertencer a uma geração que a democracia fez vencedora - "duas características que me aproximam do povo brasileiro, ele também, um sobrevivente e um vitorioso, que jamais abdica de seus sonhos".

Dilma amenizou o arquétipo de heroína que marcou a maior parte de seu primeiro mandato. É missão da ideóloga humanizar-se. A presidente abandonou a leitura do papelório de 2011. Parecia mais à vontade à frente de dois teleprompters. Num trecho do discurso em que fugiu da íntegra divulgada, disse: "Não é que a gente não tem medo de nada, a gente controla o medo".

Como a posse sugere aos presidentes a chance de que façam história, nenhum deles resiste à tentação de periodizá-la à sua maneira. No discurso da primeira posse de FH a história é traçada como a sucessão de gerações que se mobilizaram pela independência, pelo abolicionismo e pelos ideais tenentistas.

Contada por Lula, oito anos depois, a história do país tornou-se a sucessão de ciclos econômicos, da cana à industrialização, passando pelo ouro e café, que geraram riqueza sem dar conta da fome, citada 14 vezes em seu primeiro discurso de posse.

Ontem Dilma enquadrou a história do Brasil em 12 anos - no "projeto de nação que é o detentor do mais profundo e duradouro apoio popular da nossa história".

Em 1995, Fernando Henrique usara sua linhagem familiar para se inscrever numa tradição que começou com seu avô republicano e lhe foi transmitida pelo pai em sua defesa da Petrobras.
Marisa Letícia foi a única menção à família nas posses lulistas. A linhagem do filho de Dona Lindu é inaugurada por ele mesmo, que cita a origem de retirante vendedor de amendoim e laranja no cais de Santos.

Ontem Dilma traçou sua identidade sem recorrer à filha, ao neto ou à mãe, citados em seu discurso de 2011. Como naquele ano, continuou a fazer apelo divino, mas de maneira mais moderada que seu antecessor.

Deus tinha passado duas posses num Estado laico devidamente afastado dos discursos e voltou com abundância na era Lula. Na primeira posse petista apareceria duas vezes e na segunda, pós-mensalão, sete.

Em 2007 o ideário lulista se mostrou fortemente impactado pelo mensalão - "Em momentos muito difíceis, quando alguns imaginavam que o jogo tinha acabado, o povo entrava em campo e dizia claramente: nós construímos a democracia deste país e nós vamos sustentar a democracia deste país, custe o que custar".

O tom de epopeia da primeira posse lulista cedeu lugar ao manual de auto-ajuda quatro anos depois - "Eu pedi forças e Deus me deu dificuldades para fazer-me forte/Eu pedi sabedoria e Deus me deu problemas para resolver...".

As crises políticas dos últimos anos e aquelas que estão por vir popularizaram a cultivada presidente. Em 2011 citara Guimarães Rosa - "A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta".

Desta vez, preferiu lançar mão de um dito apócrifo - "O impossível se faz já: só os milagres ficam para depois". Chamou de verso o que é apenas uma tentativa de falar à maioria de cujo apoio depende para atravessar a turbulência dos próximos quatro anos.

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