quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Se não dá para cumprir a meta, mude-se a regra

• Projeto enviado ao Congresso recorre a "truque" para liberar Executivo da obrigação de cumprir meta de superávit fiscal deste ano. Economistas criticam falta de transparência

Sonia Filgueiras – Brasil Econômico

Incapaz de cumprir a meta de superávit fiscal prevista para este ano, o governo enviou ontem ao Congresso Nacional um projeto de lei que, na prática, o libera dessa obrigação. Levada ao limite, a proposta permite que o governo não faça economia alguma para pagar os juros da dívida pública neste ano (a função do superávit), ou mesmo feche 2014 com um déficit primário, algo que não ocorre desde 1997, início da série histórica do Tesouro Nacional. O projeto elimina o limite de abatimento de R$ 67 bilhões na meta de superávit primário com despesas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e desonerações tributárias, existente hoje na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2014. Pela proposta federal, a totalidade dos gastos do PAC e das desonerações poderá ser descontada da meta.

Até o momento, considerando apenas dados parciais oficiais, PAC e desonerações já somam R$ R$ 127 bilhões, volume muito superior à meta estabelecida, de R$ 80,8 bilhões para o governo central, que inclui os resultados do Tesouro, do Banco Central e da Previdência (correspondentes a 1,55% do PIB) ou R$ 99 bilhões (1,9% do PIB), incluindo estados e municípios. Em nota, o Ministério do Planejamento afirma que o governo entregará algum superávit primário neste ano, mas não define o valor a ser alcançado. O projeto foi mal recebido por especialistas em contas públicas de diversos matizes. O Ministério informa que o Executivo "está comprometido a realizar o máximo superávit primário e ao mesmo tempo garantir a execução de investimentos prioritários e a manutenção dos incentivos à economia nacional, por meio de desonerações de tributos".

A mesma nota informa que a flexibilização foi necessária porque a redução do ritmo de crescimento, experimentada pelo Brasil e por outros países, afetou as receitas necessárias aos investimentos e políticas públicas previstas. Em outro documento — a exposição de motivos que acompanha o projeto enviado ao Congresso — o governo declara que "as políticas de incentivos fiscais e a manutenção do investimento tornaram-se imprescindíveis para minimizar os impactos do cenário externo adverso e garantir a retomada do crescimento da economia nacional". Assim, foi necessário criar "espaço fiscal" para acomodar esses gastos. "A proposta encaminhada consiste em ampliar a possibilidade de redução do resultado primário no montante dos gastos relativos às desonerações de tributos e ao PAC", afirma o texto.

Para o economista Raul Veloso — um dos críticos mais contundentes da "contabilidade criativa" realizada pelo Tesouro nos últimos anos—o que houve agora foi falta de transparência. "É uma estratégia errada de lidar como Congresso. Por que não reduzir a meta claramente, se o governo tem uma justificativa para isso? Um desgaste à toa por falta de transparência", disse. André Perfeito, economista-chefe da Gradual Investimentos, que costuma assumir um tom mais moderado em suas análises, também não poupou o projeto. "O governo, mais uma vez, tenta tapar o sol com a peneira", afirmou. "A presidente Dilma ganhou as eleições com um projeto que inclui preservar a classe média. É legítimo que ela queira preservar determinadas políticas, mas é preciso assumir os custos e lutar abertamente", afirmou.

O custo, no caso, é a produção de um resultado fiscal menor. "A solução não foi clara. Agora, abre-se uma janela de vidro, cria-se um ruído que pode prejudicar o país nas análises das agências de risco", apontou. O ministro da Fazenda, Guido Mantega e o secretário do Tesouro, Arno Agustín, sustentaram que tentariam cumprir o resultado positivo até o mês passado, quando o superavit do setor público transformou-se em um deficit de RS 15,3 bilhões. "A medida retira a restrição para abatimento dos R$ 67 bilhões o que, na prática, libera para que seja abatido qualquer valor. É uma decisão discricionária, tal qual uma série de outras adotada desde a eclosão da crise internacional", aponta o pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV-RJ, Gabriel Leal de Barros.

"Ela abre a possibilidade de o governo central acumular um esforço fiscal efetivo (sem descontos de PAC e Desonerações) negativo e, ainda assim, "cumprir a meta". Ou seja, ela é inegavelmente ruim. É uma forma de contornar a restrição orçamentária do setor público", complementou. A discricionariedade excessiva é também apontada pelo economista Mansueto Almeida, integrante da ala mais crítica: "Posso descontar tudo e cumprir a meta. É um truque". Ele critica a falta de transparência. "Na Inglaterra, o setor público está com déficit primário, mas isso foi planejado e previamente explicitado, não é surpresa", exemplificou.

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