quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Míriam Leitão - Tempos misturados

- O Globo

O manifesto dos intelectuais simpatizantes do PT, e contrários a Joaquim Levy e Kátia Abreu, tem um erro básico: mistura passado e presente. Inflação baixa e gastos controlados pertencem ao Brasil moderno. Aprendemos que não existe progresso com descontrole fiscal. Defesa de anistia a desmatadores ou combate à divulgação da lista de quem foi flagrado com trabalho escravo pertencem ao atraso.

O governo Dilma está numa enrascada fiscal, que aumenta o risco da economia. Pode-se não gostar do economista Joaquim Levy, mas enfrentar esta crise não é opção ideológica. Basta olhar a cena brasileira: o superávit primário desapareceu, a dívida bruta cresceu, os gastos têm subido mais que a arrecadação. Não houve o crescimento que se esperava, e a inflação subiu. Um cenário assim é progressista?

A dívida pública é carregada pelos brasileiros com suas aplicações em títulos do Tesouro e é do interesse geral dos credores - ou seja, todos nós - que as contas estejam equilibradas. Se o governo precisar de mais dinheiro, terá que aumentar os impostos. Os gastos não são necessariamente bons, indutores do crescimento ou da justiça social. Tudo depende de que escolha se faz com o dinheiro público.

Durante a campanha, a presidente Dilma simplificou o debate, transformando os defensores de contenção nos gastos em inimigos do povo e das conquistas sociais. Acreditou quem quis. Agora, com as urnas fechadas, Dilma sabe que há despesas subindo de forma insustentável, como empréstimos aos empresários com dinheiro subsidiado do BNDES ou o incentivo ao consumo da gasolina importada. Por isso, o governo começa a preparar o ajuste. Quem não entendeu até hoje que inflação alta corrói primeiro o dinheiro dos mais pobres pode ir cuidar da vida que não vai aprender mais.

Da mesma forma, é cristalino que proteger o meio ambiente e garantir o respeito aos direitos dos trabalhadores pertencem ao avanço. Por isso, os intelectuais do PT que se insurgem contra a indicação da senadora Katia Abreu para o Ministério da Agricultura têm razão.

Hoje, há uma grande parte do agronegócio que já se distanciou das teses mais retrógradas sobre a melhor forma de conduzir a produção agropecuária. São muitos os empresários que entenderam que o equilíbrio do clima é parte indissociável do futuro do setor, e não uma imposição de ambientalistas. O mesmo avanço aconteceu na questão trabalhista.

A Confederação Nacional da Agricultura (CNA), presidida pela senadora, entrou na Justiça, anos atrás, contra a divulgação da lista suja do trabalho escravo. Essa lista, preparada pelo Ministério do Trabalho, incluía empresas apanhadas em flagrante de trabalho degradante e serve como informação à cadeia produtiva.

O empreendimento que usava o nome de "gameleira", e cujo dono era o irmão do senador Armando Monteiro, também indicado para o Ministério, conseguiu ser flagrado quatro vezes com trabalhadores em situação degradante.

A candidata a ministra da Agricultura do governo do Partido dos Trabalhadores, em entrevista à "Veja", em 2010, insurgiu-se contra uma instrução (NR-51) do Ministério do Trabalho, afirmando que era fruto do "preconceito contra a propriedade privada". A instrução tinha 252 normas. Parece excessiva, mas as exigências eram simples: servir água potável aos trabalhadores, não cobrar por equipamentos, permitir que trabalhadores lavem o agrotóxico das mãos antes de se alimentar, alojamentos de famílias não devem ser coletivos.

Achar impossível cumprir estas e outras regras básicas da civilização representa sim uma "regressão" ao mais velho defeito do Brasil. Mas não o combate à inflação e o controle dos gastos públicos, que iniciaram a agenda moderna do Brasil.

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