quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Sérgio Abranches: A dinâmica do segundo turno no presidencialismo de coalizão

Começa hoje o mais disputado segundo turno em eleições presidenciais, desde 1989. Os resultados mostram o grau de competição no primeiro turno, com toda clareza e desenham o cenário de um segundo turno em aberto. Independentemente do que se vem dizendo, que 2o turno é outra eleição, uma coisa é certa: a dinâmica política desta rodada decisiva da disputa presidencial é, realmente, diferente. No primeiro turno, a primeira etapa de constituição das candidaturas envolve a negociação das coligações eleitorais que apoiarão cada uma delas. Essa negociação toma por referência a correlação passada de forças. As negociações do segundo turno não tratam de coligações. As coligações já estão dadas. Elas tratam da formação de uma coalizão para conquistar os votos dados a outros candidatos e que será a base inicial da coalizão de governo do vitorioso. São negociações que consideram a nova correlação de forças saída das urnas e o futuro Congresso. Óticas muito diferentes, portanto.

A negociação para formar coligações, em virtude da péssima regra de distribuição de tempo na televisão, que privilegia o status quo ao conferir fatias de tempo às bancadas eleitas quatro anos antes, acaba se tornando uma barganha rasteira. Troca tempo de TV por benefícios colaterais. Partidos pequenos, com baixa representatividade, adquirem valor de barganha por causa dessa regra política e eticamente deletéria. Toda a negociação se dá, portanto, com base nas bancadas da legislatura que termina e que serão submetidas ao voto. Essas bancadas tendem a mudar e essa mudança é conhecida no final do primeiro turno das eleições. Elas de fato mudaram, tanto na Câmara, como mostra o gráfico abaixo, quanto no Senado, como se vê no gráfico seguinte.

As negociações da coalizão de base levam em consideração a necessidade de promover a migração dos votos obtidos pelos outros candidatos para cada uma das duas candidaturas e as bancadas que tomarão posse em 2015. Portanto, se assentam não na correlação de forças da eleição de quatro anos atrás, mas na nova correlação de forças que saiu das urnas agora. Também influi nessa negociação o resultado das eleições para governador, porque os governadores eleitos no primeiro turno podem ter papel importante de liderança local nas negociações políticas do 2o turno e na campanha. Os que disputarão o segundo turno para os governos estaduais, definem localmente os limites para os acordos possíveis. Por exemplo, no Rio de Janeiro, disputam dois candidatos alinhados à candidatura governista, porém, na coligação de Pezão há divisão, porque seu vice, Dornelles, apóia Aécio Neves. No Rio Grande do Sul também disputam dois candidatos de partidos da coligação governista, porém o candidato do PMDB tem mais afinidades com a dissidência que apoiou Marina Silva.

O objetivo principal dessa negociação que se abre hoje é, evidentemente, conseguir apoio que aumente a probabilidade de conquistar o voto principalmente dos eleitores de Marina Silva para vencer o segundo turno. Mas, subsidiariamente, Aécio Neves terá que pensar, também, na formação de sua coalizão definitiva de governo, no caso de vencer as eleições. Ele começará a tentar obter o apoio de bancadas que não estão comprometidas com a candidatura oficial, para ampliar sua base de apoio parlamentar. A segurança da governabilidade será um tema que estará nas análises e discussões sobre os possíveis cenários pós-segundo turno. A fragmentação partidária aumentou, como previsto, com a diminuição do tamanho das maiores bancadas, o aumento de algumas bancadas médias e a entrada de pequenos partidos na Câmara dos Deputados e no Senado, como mostra o gráfico abaixo.
A coligação de Dilma Rousseff, apesar de ter perdido espaço na Câmara dos deputados, com os novos resultados teria uma base representando 53% das cadeiras, como se vê no gráfico.
Ocorre que há muitas dissidências no PMDB e em outros partidos de sua coligação. Aécio Neves, mesmo com a adesão de todos os parlamentares eleitos pela coligação de Marina Silva, ficaria com apenas 39% das cadeiras na Câmara. Isso significa que, se vencer o segundo turno, terá que buscar adesão de partidos que estiveram na coligação de Dilma Rousseff. Ele e Marina já têm o apoio de parlamentares eleitos por partidos que apóiam a candidatura oficial. Estes parlamentares, no caso de vitória da oposição, podem apoiar o governo como dissidentes, ou mudar para partidos da coalizão do novo governo, por divergência programática com seus partidos de origem.

No Senado, o quadro mudou menos porque só houve renovação de um terço. Ainda assim, houve mudanças importantes. O PSDB ganha uma liderança de muito peso com a entrada de José Serra, por exemplo. A coligação de Dilma ampliou sua representação no Senado e a de Aécio diminuiu. A de Marina dobrou. Mas mesmo somando as duas bancadas de oposição, somariam apenas 32% das cadeiras. Nenhuma das duas candidaturas, porém, tem a maioria no Senado.

A novidade deste segundo turno em relação aos demais, é que o apoio da coligação de Marina Silva a Aécio Neves, se ocorrer, terá como condicionante inarredável um acordo programático e não uma simples barganha de cargos e promessas orçamentárias como tem sido habitual. É uma novidade importante e que pode ter um efeito pedagógico fundamental para a mudança de qualidade do presidencialismo de coalizão no Brasil. Deve ter, também, impacto na campanha, uma vez que seria uma demonstração concreta do que poderia ser a transição para o que Marina Silva e Eduardo Campos chamavam de nova política. Um acordo negociado em torno de itens de programa, às claras, que seria apresentado formalmente aos eleitores por meio de um manifesto programático para formação de uma coalizão mais ampla de oposição. Há sinais de que a coligação de Marina Silva caminha para este acordo. Resta saber se Aécio Neves conduzirá essa negociação com a habilidade e a convicção necessárias. Em 2010, Marina Silva não apoiou José Serra, nem Dilma Rousseff, porque nenhum dos dois se dispôs a negociar pontos programáticos que ela considerava indispensáveis a um acordo. O primeiro sinal foi dado por Marina Silva e Beto Albuquerque, seu candidato a vice. Marina Silva disse que será uma decisão conjunta dos partidos de sua coligação, que levará em conta a urgência requerida pelo segundo turno e o fato de que a maioria dos eleitores mostrou que é contra o que “está aí”. Beto Albuquerque disse que, pessoalmente, não tem como apoiar a candidatura Dilma Rousseff que atacou de forma tão violenta a sua chapa. O segundo sinal é uma nota pedindo a união da oposição por quase 170 personalidades influentes junto às candidaturas de Aécio Neves e Marina Silva, entre elas, assessores de ponta dos dois candidatos.

O que ocorrerá nas próximas três semanas é imprevisível, como imprevisível foram as mudanças que marcaram o primeiro turno presidencial, desde o início da campanha. O que se pode dizer é que a disputa está em aberto. Dilma Rousseff buscará a reeleição tendo obtido 43,3 milhões de votos, representando 41,59% do total. Aécio Neves disputará a presidência com 34,9% milhões de votos, ou 33,55% do total no primeiro turno. Marina Silva terá papel decisivo no segundo turno, representando 22,1 milhões de eleitores, ou 21,32% do total. Com uma diferença de 8,4 milhões de votos, ou 8 pontos percentuais entre os dois, será um segundo turno muito competitivo. Seria muito bom para a democracia brasileira, que essa disputa se desse com base no confronto de ideias para o futuro do Brasil. Mas tudo indica que, por iniciativa do artífice da propaganda de Dilma Rousseff, ela será agressiva e de ataque, como no primeiro turno. O tempo de TV é igual. O período de campanha é curto. De um lado há a expectativa de um encontro programático entre as candidaturas centrais da oposição. De outro, sinais de uma campanha que tentará desconstruir a candidatura de Aécio Neves. Uma campanha negativa nem sempre é boa estratégia. Mas dependendo do tom e de seu impacto nas pesquisas iniciais, pode forçar Aécio Neves a jogar no ataque e o Brasil perderá a oportunidade de confrontar programas e ideias.

No caso de um entendimento entre Aécio Neves e Marina Silva, um ponto importante do acordo programático será o tema ambiental. A visão ambiental, climática e de política energética do PSDB é, ainda, bastante primária. A absorção das propostas nestes campos do programa de Marina Silva melhorariam significativamente o programa de governo de Aécio Neves. Na área econômica, os programas são bastante afins, mas o do PSDB é mais consistente e completo. Não haveria razões para grande divergência nesta área entre os dois.

Se Dilma Rousseff optasse por uma campanha de esclarecimento da população e confronto de ideias e programas, teria que rever, neste quadro de acordo entre Aécio Neves e Marina Silva, suas propostas para o meio ambiente, a mudança climática e a política energética. O governo Dilma Rousseff teve desempenho pífio nesses campos. Se escolhesse travar debate e confronto em torno dessas ideias precisaria rever radicalmente suas posições e convicções nessas áreas. Também na economia, o eleitor seria exposto a propostas polares. A qualidade das propostas econômicas da candidata à reeleição é baixa. Na verdade, ela não disse muito o que fará. Se optasse por debater ideias, teria que mobilizar imediatamente sua nova equipe econômica, para que pudesse expor com clareza como pretende enfrentar os desafios econômicos inegáveis que o Brasil terá que enfrentar nos próximos anos, o que não fez no primeiro turno.

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