terça-feira, 2 de setembro de 2014

Daniel Aarão Reis: A necessária reconstrução da utopia socialista

Quando se desagregaram o socialismo soviético e seus clones históricos na Europa Central e na Ásia, e apesar da existência remanescente de ditaduras que se conservaram, invocando princípios revolucionários, em Cuba e na Coreia do Norte, instalaram-se tempos difíceis e pessimistas para todos os adeptos da gesta socialista, concebida no século XIX.

Mesmo os críticos mais radicais do socialismo realmente existente, muitos dos quais questionavam o próprio caráter socialista daqueles regimes, foram alcançados, por tabela, pelo desmoronamento surpreendente do colosso soviético e pelas mutações não menos inesperadas por que passava o antigo Império do Meio. Como se fossem imensas árvores, de fundas raízes, a queda de uma e a transformação da outraarrastaram consigo tudo o que fora ligado ou associado às tradições socialistas. O desmoronamento repercutiu intensa e negativamente em todo o campo da opinião simpática à, ou partidária da, ideia socialista, tanto mais porque tais processos seriam potencializados, em chave triunfalista, pelos poderosos meios de comunicação identificados com o capitalismo.

Ao mesmo tempo, contudo, como não há perdas sem ganhos, despejaram-se os horizontes daquelas pesadas hipotecas que sombreavam a proposta de construção do socialismo. Para os que mantiveram, segundo a recomendação do revolucionário sardo, o otimismo da vontade, mediado embora pelo pessimismo da razão, abriram-se perspectivas fascinantes e inovadoras, capazes de semear o terreno para a formulação da crítica do passado e de novas alternativas históricas para o futuro.

Mesmo porque, ao contrário do que imaginavam certos “cães de guarda”, não findara a história nem se havia atenuado a lógica predadora e desigual do capitalismo a suscitar continuamente contradições e oposições, desafios e espírito crítico.

É exatamente deste espírito crítico, de que tanto carece a reelaboração da utopia socialista, que este livro está permeado.

Silvio Pons, consagrado professor de História do Leste Europeu, na Universidade de Roma II (Tor Vergata), autor de numerosas obras sobre o socialismo soviético e o movimento comunista internacional, em especial no contexto da Guerra Fria, nos apresenta nas páginas que se seguem um rigoroso balanço histórico do modelo socialista soviético e do comunismo internacional no século XX, da revolução de outubro à dissolução da União Soviética.

O que impressiona, em primeiro lugar, é a diversidade e a qualidade das fontes exploradas, onde se destacam os arquivos russos (Arquivos da Internacional Comunista e do Partido Comunista da União Soviética, Arquivos de Estado para Relações Exteriores, História Contemporânea e História Política e Social), os de alguns importantes partidos comunistas da Europa Central e Ocidental e os de instituições dedicadas à história do comunismo, como a Hoover Institution, em Stanford, a Fundação Gorbachev, em Moscou, e a Fundação Feltrinelli, em Milão. Este variado corpus documental oferece sólida base empírica para as análises e interpretações do Autor. Por outro lado, Pons estabelece diálogo com atualizada bibliografia, compreendendo estudiosos contemporâneos de variados vínculos institucionais e origens nacionais, garantindo ao texto um raro padrão de excelência internacional, mesmo que, em determinados momentos, suas afirmações possam merecer reservas ou considerações críticas, o que é inevitável em debates deste nível de qualidade.

Em narrativa densa, através de seis capítulos, estendendo-se do “tempo da revolução” (1917/1923) ao “tempo da crise (1968/1991), passando pelos “tempos” do Estado (1924/1939); da guerra (1939/1945); do império (1945/1953) e do declínio (1953/1968), complementada por um prólogo e um epílogo, Silvio Pons oferece um painel amplo e penetrante de uma história de guerras e revoluções, de imensas esperanças e de grandes frustrações, de tentativas coroadas de êxito e de erros catastróficos, de análises adequadas e de equívocos insanáveis, procurando compreender, associando-se a um empreendimento iniciado já nos anos 1920 e 1930 por estudiosos de distinta orientação, como e porque puderam ter sido geradas tiranias abomináveis no ventre de uma proposta originalmente comprometida com a justiça, a liberdade e a igualdade.Como e porque uma proposta de futuro pôde se aninhar no passado de uma forma tão drástica em relativamente tão pouco tempo. Em síntese: como o socialismo fracassou no século XX.

Quatro questões parecem-me fecundas no estudo de nosso autor. Elas têm sido recorrentemente investigadas e analisadas por diferentes pesquisadores, os quais, em alguma medida, sintetizam as preocupações de Silvio Pons e com muitos dos quais, aliás, ele dialoga.

A primeira diz respeito às bases históricas e sociais do autoritarismo socialista. A segundatem a ver com as relações entre o Estado soviético e o movimento comunista internacional, asdifíceis interações entre nacionalismo e internacionalismo no contexto da história do comunismo no século XX. A terceira trata da inevitabilidade, ou não, do desmoronamento histórico do modelo soviético. E a quarta, finalmente, aborda o papel histórico que terá sido desempenhado pelo comunismo e pelo “modelo soviético” ao longo do século passado.

As considerações a respeito destes temas, evidentemente, não esgotam de modo algum, longe disso, o conteúdo do livro que você tem em mãos. Apenas as faço como uma introdução ao livro de Silvio Pons, como se fora um estímulo à reflexão sobre a obra que escreveu.
I
O autoritarismo comunista, como se sabe, tem bases múltiplas, teóricas, históricas, sociais, nacionais e internacionais. Estudá-las, em sua complexa interação, é contribuir para compreender a dinâmica ditatorial assumida por um projeto que tinha, porém, em seus inícios, a igualdade social e a liberdade política como objetivos entrelaçados.

A sublevação do povo de Petrogrado, em fevereiro de 1917, dando início ao processo da revolução russa, foi marcada por uma surpreendente – e vigorosa – afirmação da organização autônoma das gentes – plasmada nos conselhos de operários e soldados, os sovietes das cidades, dos quartéis e das trincheiras, comprometidos, como parlamentos plebeus, com a liberdade de expressão e de organização e com a disputa contraditória de ideias e de programas. Num segundo momento, este processo de auto-organização alcançaria as massas camponesas e as nações não russas,as quais multiplicariam comitês e organizações que eram resultado e fator das disputas políticas, desenvolvidas em atmosfera de grande liberdade, apesar de contratendências autoritárias, cuja existência, de resto, era inevitável, considerando-se a escassíssima – quase irrelevante – tradição democrática no solo social e político do Império russo, não fora este último conhecido como o “cárcere dos povos”.

Contudo, a atmosfera de liberdades, que tanto impressionava os contemporâneos, nativos ou visitantes, cedo esvaiu-se, esvaziou-se, transformando-se os sovietes – de parlamentos legislativos e executivos – em meras fachadas, colonizadas pelos bolcheviques, aparelhos de ratificação de vontades elaboradas em outros centros de poder.

Como isto pudera ter acontecido em tão breve tempo?

Silvio Pons aponta dois processos maiores, entrelaçados e decisivos: a cultura política da revolução catastrófica e a lógica da guerra civil, incompatíveis com os valores democráticos. As guerras, por mais comprometidas originalmente com a conquista de liberdades, não tendem, por natureza, a se coadunar com as liberdades democráticas. Na vigência destas, o adversário derrotado é preservado e, mais do que isto, garantido, para poder, em momento seguinte, tornar-se vitorioso no quadro da alternância de poder, pressuposto básico dos regimes democráticos. Nas guerras, ao contrário, o adversário se transforma em inimigo que urge destruir e aniquilar definitivamente. Daí decorrem imperativos hierárquicos, verticais, sumários. A ordem substitui a persuasão, a disciplina uniformizadora prevalece sobre a diferença, a decisão centralizada e rápida mata o debate. Num momento posterior, em outro movimento, o da revolução pelo alto em fins dos anos 1920, a perspectiva da construção de um Estado demiurgo, centralizado e ditatorial, como agente transformador das condições econômicas, sociais, políticas e culturais, selou em definitivo a sorte das liberdades e da democracia na experiência soviética.

Tais referências, trabalhadas e criticadas com acuidade pelo Autor, nos remetem para o plano das opções do partido bolchevique dominante, cedo convertido em partido único, fundido ao Estado, o partido-Estado, numa construção original que, antes de surpreender os críticos, confundiu os próprios revolucionários, muitos dos quais se viram involuntariamente arrastados na torrente estatista revolucionária, figurada na famosa metáfora de Lenin, vendo-se como o motorista de um carro rolando ladeira abaixo, sem freios, de pouco adiantando manter comandos formais que não se faziam obedecer na prática.

Na conformação do autoritarismo que se foi afirmando, haveria, talvez, que apontar mais duas dimensões.

A das tradições social-democratas – das quais, recorde-se, os bolcheviques eram apenas um ramo. Inebriados pelo cientificismo triunfante do último quartel do século XIX, os social-democratas ousaram transformar a política em ciência, uma ciência que se queria, petulantemente, certa e bem sabida, exata, como era próprio do ar do tempo. Os social-democratas não apenas transferiram estas concepções científicas para o campo imprevisível e imprevisto da política, mas também não tardaram em investir-se como seus únicos guardiões, daí decorrendo a ideia – falaciosa – de que eram os únicos representantes de trabalhadores, cujos movimentos, ao contrário, caracterizavam-se por múltiplas diferenças e identidades.

A outra dimensão refere-se às demandas sociais, históricas. O Leviatã que se formou na União Soviética revolucionária não foi obra somente da vontade do partido bolchevique dominante, ou da de Stalin, conforme o primário diagnóstico de N. Khruschev, mas igualmente, ou principalmente, expressão da vontade de amplas camadas e classes que, embora reprimidas, participaram ativa e conscientemente da construção do Estado. Em movimento inédito na história daquele país e do mundo, plebeizaram-se as principais instituições políticas, como apontou N. Werth. Combinando o messianismo religioso dos russos com o científico dos bolcheviques, chancelou-se um processo de modernização acelerada, sob ritmos demenciais, articulado com o objetivo grandioso de uma revolução mundial (M. Lewin). Ensejaram-se, assim, mudanças radicais, desmentindo uma certa historiografia liberal- conservadora, segundo a qual o Estado soviético não foi senão a repetição do mesmo, a continuação, com outras roupagens, do Estado czarista.

O que se quer dizer, em resumo, é que as chaves para a elucidação do autoritarismo comunista passam pela dupla compreensão da cultura política hegemônica – o catastrofismo revolucionário associado à ilusão purificadora e regeneradora da guerra, mais a “cientifização” da política – e das bases sociais e históricas que potencializaram esta cultura no solo histórico e nas circunstâncias conjunturais russas.
II
Acompanhando a melhor historiografia, Silvio Pons bem assinala que na insurreição de Outubro, elo essencial do processo revolucionário russo, houve uma aposta – o eventual triunfo dos bolcheviques seria complementado e, num segundo momento, liderado pelas revoluções na Europa Central e Ocidental. Fazia parte das concepções universalistas vigentes. O socialismo seria internacional ou não seria.

Aposta perdida. Esperanças, não totalmente ilusórias, ainda foram cultivadas até outubro de 1923, quando, pelo menos a curto prazo, desapareceu a hipótese de revolução na Europa.

Restaram os povos dominados pelo colonialismo ou dependentes, em outras modalidades, das grandes potências capitalistas. A Ásia e, em especial, a China, mereceram atenção particular. Para incentivar a revolta anticolonial e anti-imperialista, havia a Internacional Comunista, fundada em 1919, e o Estado soviético, consolidado em 1922. Haviam falhado em “promover” a revolução na Europa. Teriam, agora, uma segunda chance na China e na Ásia.

Num primeiro momento, para todos, e para todo o sempre, para muitos, não havia contradição antagônica entre a URSS e o Movimento Comunista Internacional. Ambos se apoiariam e, do seu mútuo agenciamento, brotaria a revolução mundial. Havia ali um compartilhamento de referências, um coerente universo, que favorecia o centralismo e a uniformidade. Assim se fez a Internacional Comunista. Incorporadas as concepções catastróficas, transformou-se logo numa máquina de guerra, e, como tal, militarizada, hierárquica.

A questão, registrou Pons lucidamente, é que, tanto na Europa como na Ásia, afloravam situações extremamente diversas, difíceis de caber em moldes pré-fabricados e de obedecer a centros hierárquicos. A II Guerra e suas exigências mascararam o processo, mas não impediram o florescimento da diversidade. A dissolução da Internacional, em 1943, apenas superficialmente reconheceu as evidências de uma crescente diferenciação. Permaneceram, ocultas, as ambições centralistas e uniformizadoras, intrinsecamente inseparáveis das concepções políticas vigentes. Com a transformação da União Soviética em superpotência e a instauração da Guerra Fria e da bipolaridade, reforçaram-se o universalismo e o centralismo. Como numa espiral, reproduziam-se, em escala ampliada, os mesmos problemas e as mesmas tendências, anteriores à II Guerra Mundial, agora exacerbados. Aspirações particulares eram travadas e sufocadas. Nesta atmosfera, alternativas transformavam-se em dissidências, logo expelidas do “mundo socialista” – foi o caso da Iugoslávia, em 1948. As demais democracias populares – que não eram democráticas nem populares – passaram por enquadramentos e expurgos que as fizeram cópias empobrecidas da matriz, garantidas pela presença do exército soviético.

Depois da morte de Stalin, no contexto das aberturas promovidas na URSS, pareceu possível ampliar aqueles horizontes. A ideia de um policentrismo, proposta pelos comunistas italianos, muito mais adequada ao processo histórico real, chegou a ser cogitada, mas não prevaleceu. Para se impor, carecia de uma revisão, pela base, de tradições arraigadas. Não havia força política suficiente para viabilizar tal objetivo.

Nesta atmosfera, a diversidade tinha dois caminhos – ocultava-se ou se tornava um cisma. A trajetória dos comunistas italianos foi emblemática da opção por um aggiornamento disfarçado –a unidade na diversidade. A dos chineses explodiu num cisma. Sintomaticamente, por não rever em profundidade as concepções historicamente compartilhadas, reproduziu, em sua área de influência, o controle e, no limite, o sufocamento das particularidades. Beijing converteu-se numa nova Moscou.

Não foi possível, no entanto, em qualquer variante, deter o processo histórico de contínua diferenciação, determinada pela dinâmica da internacionalização do capital. As múltiplas reuniões e conferências comunistas assumiam, cada vez mais, um caráter patético, no afã de estabelecer programas e denominadores comuns. Fachadas inviáveis, escondiam o sol com a peneira. Quando a Guerra Fria acabou, já o movimento comunista internacional, de fato, desaparecera como fator político relevante, como bem observou A. Tchernaiev, assessor de M. Gorbachev, citado por Pons.

Restou um paradoxo, o da incapacidade dos comunistas, campeões do internacionalismo, de apresentar propostas revolucionárias a um mundo cada vez mais internacionalizado. Ao sustentar teimosamente antigos paradigmas, tornaram-se irrelevantes.
III
Enredado em suas contradições, o socialismo soviético seria insuscetível a autorreformas? A corrente liberal conservadora, capitaneada por L. Shapiro e R. Pipes, incorporando e, em certa medida, exacerbando e deformando a crítica de H. Arendt ao totalitarismo, sempre foi muita assertiva a este propósito – o modelo soviético só se extinguiria por pressões externas, como o seu clone nazista. A própria ideia de movimento interno à sociedade soviética era tendencialmente descartada, eis que se encontrava inerme, como lobotomizada, nas mãos de um Leviatã,sem fraturas.

M. Lewin fez a crítica destes propósitos. A sociedade soviética movia-se, o que se evidenciou nas tentativas de mudança efetuadas mesmo antes da morte de J. Stalin por S. Kirov, no começo dos anos 1930, e por N. Voznessenski, no imediato pós II Guerra Mundial. Limitados e frustrados ensaios. Seriam, porém, retomados em maior escala, depois da morte do tirano, no quadro do degelo, empreendido sob liderança de N. Khruschev, entre 1956 e 1964. Mais tarde, com escopo muito mais profundo e ambicioso, viriam a perestroika (reestruturação)e a glasnost (transparência), lançadas por M. Gorbachev, a partir de 1985 e 1987. Também fracassaram. E seu fracasso precipitou o desmoronamento surpreendente do colosso.

Era inevitável o fim da União Soviética? Para o arguto G. Kenan, citado por Pons, desde fins dos anos 1940, a luz daquela estrela ainda brilhava, mas seu núcleo já se apagara. O fato, registrado também pelo nosso Autor, de que os sucessores de J. Stalin dele procuravam se demarcar e se afastar, demonizando-o, ao contrário dos herdeiros de Lenin, que sempre o reivindicaram, mesmo se batendo entre si, era indício seguro de que estava em jogo uma falência sistêmica.

O fato é que o socialismo soviético, segundo análises predominantes ao longo dos anos 1970, parecia em crescimento, cada vez mais forte, suscitando esperança entre seus aliados na África e na Ásia e temores entre as potências capitalistas e mesmo em setores importantes das esquerdas democráticas. Seu parceiro e rival, a China, consolidado o cisma, depois das convulsões da revolução cultural, em fins daquela mesma década empreendia autotransformações de vulto (a política das Quatro Modernizações, aprovada em 1978), cujo alcance global ainda não era entrevisto, mas com virtualidades já reconhecidas.

É certo, como observa Pons, que as guerras entre os comunismos asiáticos (Vietnã contra Cambodja e China contra Vietnã, sem contar o ressoar dos tambores de guerra entre a URSS e a China) evidenciavam o reforçamento da cultura catastrófica e militarista, e o mesmo se poderia dizer do expansionismo da União Soviética, de que a invasão no Afeganistão, em 1979, era a expressão mais acabada. A corda estava sendo esticada além dos limites razoáveis, tendia a arrebentar. A China o teria reconhecido – suspendeu rapidamente as hostilidades contra o Vietnã, abdicou do terceiro-mundismo militante e revolucionário, confinou o maoísmo no passado, mesmo que mantendo reverência formal ao grande timoneiro, e passou a se dedicar quase exclusivamente, em chave nacionalista, ao processo de modernização de seus imensos território e população.

O mesmo não aconteceu com a União Soviética, e isto teria representado o seu fim, sobretudo porque enveredou por um processo reformista que punha em questão as características básicas que, até então, haviam feito a sua força. Se não o tivesse feito, argumenta Pons, poderia ainda durar no tempo, embora já sem dinamismo. Ao fazê-lo, ao questionar e pôr em risco os fundamentos de sua força, soçobrou sem remédio.

Pons tem razão ao afirmar que “a propaganda antiocidental (dos soviéticos) se revelava vazia e insensata, voltada pra denunciar um capitalismo que não mais existia ou para celebrar um socialismo que quase ninguém desejava”. E o mesmo se pode dizer quando pondera que “a erosão política, cultural e simbólica do comunismo precedeu, e não sucedeu, sua crise [...] como sistema econômico”. Gorbachev o reconheceu: era preciso capturar a “alma” dos soviéticos para o socialismo, em especial a da juventude, e democratizar o sistema para reformá-lo. Não foi possível. O gigante – e as estátuas que celebravam sua glória – vieram abaixo.

Mas na afirmação do fim inevitável, “fatal”, do modelo soviético não haveria um grão de história retrospectiva? O que determinou, de fato, a desagregação do modelo? O fato de ter questionado seus fundamentos? Ou o de não ter havido a capacidade de formular políticas concretas que viabilizassem as mudanças desejadas? Talvez ainda sejam necessários muitos anos para um diagnóstico mais seguro ou consensual.
IV
O modelo soviético viveu e morreu. É possível chegar a alguma conclusão sobre o seu papel histórico?

Entre os habitantes que viveram os rigores da ditadura soviética, na matriz ou entre os clones, há controvérsias entre os que nenhuma nostalgia sentem de um tempo sem liberdades, marcado pela onipotência da polícia e pelos privilégios dos apparatchiks, e os que recordam em chave positiva um ambiente considerado por eles de ordem, paz, prosperidade relativa, direitos sociais assegurados e prestígio internacional. Entre estes juízos contraditórios, não é, e não será, possível encontrar unanimidade. Talvez eles nos deixem entrever as fraquezas e os pontos fortes de um regime que desapareceu.

E. Hobsbawm gostava de dizer que o Estado soviético tolhera as liberdades dos “seus”operários, ao mesmo tempo em que promovia, pela ameaça que encarnava, os direitos sociais e políticos na Europa Ocidental. Nesta argumentação, o warfarestate – soviético – haveria contribuído, malgré lui-même e indiretamente, para a construção e consolidação do welfare state – o Estado do bem-estar social, promovido pela social-democracia, pela democracia-cristã e pelos liberal-sociais europeus.

Silvio Pons permite-se questionar esta avaliação, formulando a hipótese, não verificável, de que seria plausível imaginar conquistas ainda mais significativas num quadro em que inexistisse o socialismo soviético. Neste raciocínio, a ameaça dos tanques soviéticos podia favorecer avanços (“entreguemos os anéis para salvar as mãos”), mas também os limitava (“não queremos aqui o modelo soviético”). Há um grão de verdade nesta assertiva, mas, como se sabe, é muito difícil formular uma históriacontrafactual.

Seria possível elaborar melhores juízos nas vastas regiões do outrora chamado “terceiro mundo”: a América Latina, a África e a Ásia? Quanto aos chineses, nem vale a pena indagar como avaliam o socialismo soviético. No Império do Meio, os soviéticos não deixaram saudades. Entretanto, do ponto de vista mais amplo das lutas de libertação nacional ou dos processos de descolonização, para além dos erros cometidos, e não apenas pelos soviéticos, mas também pelos nativos (desde que se escape de uma lógica simplista e unilateral), a União Soviética, mesmo quando não era um aliado direto, proporcionando apoio político, militar e diplomático, foi um fator de contenção e de inibição dos “velhos colonialismos”. Neste preciso sentido, representou um dado positivo nas relações internacionais. É verdade que os Estados Unidos também viram com bons olhos o desmoronamento dos impérios europeus, mas as evidências mostram como apoiaram, em diferentes conjunturas (França no Vietnã; Portugal em suas colônias), Estados e tropas coloniais. Já a URSS, desde os anos 1920, não tinha nenhum interesse na permanência do “mundo colonial e neocolonial”e por isso contribuiu, e muito, direta ou indiretamente, para o fim dos impérios. Por outro lado, seu modelo estatista impressionou diferentes lideranças do “terceiro mundo”, que adotaram muitos de seus aspectos para grande dano de uma atmosfera de liberdades civis e políticas, pois o nacionalismo estatista terceiro-mundista, para além de assegurar, em determinados momentos e espaços, direitos sociais, caracterizou-se, quase sempre, por uma lógica autoritária.

Talvez valesse ainda aduzir que o experimento socialista soviético perdeu a luta contra o nacionalismo. Ao contrário do que sonhavam, e previam, os socialistas oitocentistas, o século XX não registrou o triunfo do internacionalismo socialista. Não só isto não aconteceu, mas também ali onde o socialismo vigorou fortaleceram-se as tendências nacionalistas, e é fazendo uso do nacionalismo que ele até hoje sobrevive onde isto foi possível.

Frente a este problemático balanço crítico, Kiva Maidanik, de origem ucraniana, mas que se autoidentificava orgulhosamente como bolchevique e soviético, afirmava, amargurado, pouco antes de morrer: “Pelo menos aprendemos o que não se deve fazer”, sublinhando sempre, e enfaticamente, a partícula negativa. No futuro saberemos se o diagnóstico do velho Kiva tinha fundamento.

É verdade que se perdeu a certeza nos “amanhãs que cantam”. Se alguma coisa as experiências novecentistas demonstraram, é que, ao contrário do que muitos imaginavam, o mundo, definitivamente, “não marcha para o socialismo”.

Resta a possibilidade de ainda apostar. No quadro das contradições suscitadas por um capitalismo que reitera sua natureza de sistema predador e desigual, cabe aos que se mantêm fiéis a uma perspectiva alternativa, ensaiar, tateantes, a experiência de novos caminhos, comprometidos com a necessária reconstrução da utopia socialista.

Para este objetivo, Silvio Pons, empreendendo rigorosa análise crítica do comunismo do século passado, propõe uma valiosa contribuição


Maio, 2014.

Daniel Aarão Reis
Professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense

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