sábado, 6 de setembro de 2014

André Lara Resende: Riqueza, crescimento e desigualdade

• O conceito de PIB deixou de fazer sentido em seu duplo papel de aferidor de desempenho e de qualidade de vida

• Na democracia contemporânea, a desigualdade precisa ser vista como resultado da meritocracia, sem a qual todos perderiam

- Valor Econômico – Eu & Fim de Semana

A taxa relativamente modesta de crescimento demográfico mundial, de 0,8% ao ano, nos últimos três séculos, é suficiente para mais do que dobrar o número de pessoas sobre a Terra a cada 100 anos e de multiplicá-lo por 10 a cada 300 anos. Já se dá um início de reversão. A população mundial cresce hoje a taxas muito inferiores, com sinais de que deve voltar a se estabilizar, ou até mesmo decrescer, a partir de algum momento da segunda metade do século XXI. O crescimento demográfico terá, então, completado um ciclo de aceleração e desaceleração que levou a população mundial a saltar de menos de 600 milhões para mais de 7 bilhões de pessoas em menos de quatro séculos.

Sem crescimento demográfico, o que esperar do crescimento da renda? Como parte do crescimento da renda é derivada do componente demográfico, seria natural que, uma vez a população estabilizada, o crescimento da renda ficasse limitado às taxas observadas para a renda per capita. A renda passaria, então, a crescer a uma taxa mais próxima de 2% do que dos 4%, ao ano, observados no apogeu do século XX. O crescimento da renda per capita dos países avançados já foi bem menor de 1990 para hoje: na Europa, 1,6% ao ano; nos EUA, 1,4%; no Japão, 0,7. Os fatos confirmam a lógica. Daqui para a frente, ao menos nos países avançados, é ilusório contar com taxas de crescimento de 3% ou 4% ao ano. Interrompido o crescimento demográfico e atingida a fronteira tecnológica, será preciso contar com o avanço da tecnologia para garantir o crescimento da produção e da renda.

Papel do progresso tecnológico
Essa é a lição do modelo de referência do crescimento conhecido como o modelo de Solow-Swan. Até que se tenha acumulado capital suficiente e se tenha atingido a fronteira tecnológica, o crescimento depende das taxas de poupança e de investimento. Quanto mais se poupa e se investe, mais se cresce, mas, atingida a relação capital/produto de equilíbrio de longo prazo, o crescimento se torna independente das taxas de poupança e de investimento. Passa a depender do progresso tecnológico. No modelo original, o crescimento atribuído ao progresso tecnológico é estimado por resíduo, pela parcela do crescimento que não advém nem do capital nem do trabalho. Estudos posteriores, que desenvolveram o modelo original, procuraram encontrar os fatores explicativos do progresso tecnológico. A maioria o associa primordialmente à educação - que aumentaria o que se convencionou chamar de capital humano - e à pesquisa, que aceleraria a descoberta de novas tecnologias. O debate sobre o futuro do crescimento econômico, atingida a fronteira tecnológica e estabilizada a população, gira em torno do ritmo do progresso tecnológico. A questão passaria, assim, da tentativa de promover o crescimento para a - ainda mais complexa - de acelerar o ritmo do progresso tecnológico.

Em trabalho recente ("Is Economic Growth Over?"), Robert G. Gordon sustenta que o crescimento econômico, como o conhecemos, foi um fenômeno do século XX. Só foi possível devido à Revolução Industrial do século XIX, quando o progresso tecnológico deu um salto excepcional. Muitos novos produtos permitiram profunda mudança nas formas de viver, produzir e consumir. Estimularam, simultaneamente, a oferta e a demanda. É possível que o progresso tecnológico mais recente, com a revolução da informática, embora igualmente impressionante, não tenha a mesma capacidade transformadora, que não seja capaz de aumentar a produtividade e estimular a demanda da mesma forma que as inovações da Revolução Industrial. Os computadores e a internet deixam claro que a inventividade humana não dá sinais de arrefecer, mas os efeitos transformadores dessa inventividade sobre a produção, o consumo e a renda parecem não escapar à lei dos rendimentos decrescentes.

Não é preciso compartilhar do ceticismo tecnológico de Gordon para concluir que o crescimento, como o conhecemos no século XX, não deverá continuar até o fim deste século XXI; basta a lógica das taxas compostas. Assim como a população mundial deverá se estabilizar dentro de algumas décadas, também o crescimento, da renda e do consumo, dá sinais de desaceleração. Embora a qualidade de vida possa continuar a melhorar, a renda como a medimos, associada primordialmente à produção de bens, não poderá continuar a crescer indefinidamente.

Leia a íntegra em mais informações

Clique aqui e leia a íntegra em Riqueza, crescimento e desigualdade


Missão cumprida para o PIB
Se o crescimento é fenômeno relativamente novo, o Produto Interno Bruto (PIB) é ainda mais recente. Os conceitos e as estatísticas das chamadas contas nacionais ainda não completaram um século - só foram criados no final do anos 30 -, mas estão por toda parte, dominam de tal forma o debate público, que é difícil imaginar a economia e a própria política sem eles. A primeira publicação de um número de PIB foi feita em 1924, para a economia americana. Até então, media-se o tamanho de uma economia pelo tamanho da população.

Depois da Grande Depressão, nos anos 30, o presidente Franklin Roosevelt, em busca de uma saída para a estagnação em que os EUA se encontravam, encarregou o bielo-russo naturalizado americano Simon Kuznets, posteriormente ganhador do Prêmio Nobel, de construir indicadores mais confiáveis para acompanhar de perto o desempenho da economia. Entre 1931 e 1934, Kuznets coordenou o desenvolvimento e a elaboração de um sistema estatístico de acompanhamento da produção e do consumo, conhecido como das contas nacionais. O mais utilizado de seus indicadores é o hoje ubíquo PIB.

O desafio que Kuznets se propôs foi criar um índice capaz de acompanhar de perto a evolução da economia. Para isso, deveria ser essencialmente uma medida da produção agrícola e industrial. O objetivo era construir uma medida de tudo que fosse produzido no país durante um determinado período; daí o nome de Produto Interno. O termo "bruto" significa que é uma medida do que é produzido, sem considerar a depreciação do que foi utilizado no caminho.

Para somar tudo que fosse produzido, a opção de Kuznets foi utilizar os valores de mercados. Pôde, assim, adicionar também os valores dos serviços comercialmente prestados, um setor, na época, menos relevante, mas não desprezível. A soma dos valores de tudo que foi produzido em determinado período, calculados a preços de mercado, é então chamada de Produto (ou Renda) Interno Bruto. Ao utilizar preços de mercado, Kuznets optou por desconsiderar tudo que não fossem transações comerciais. Por exemplo, o trabalho doméstico e da criação dos filhos e atividades como a leitura, o estudo, o exercício físico, o lazer, a criação artística, a execução e o desfrutar da música, desde que não fossem remunerados. Na época, quando as economias da fronteira tecnológica, como a americana, eram essencialmente industriais e agrícolas, quando a produção industrial determinava o ritmo de toda a economia, a exclusão não parecia grave. O objetivo primordial era avaliar o nível da produção agrícola e industrial. O resto viria a reboque.

O conceito de PIB é uma construção artificial que procura somar o valor de tudo o que se produz e todo serviço prestado comercialmente no país. É um índice da atividade econômica interna em determinado período. Como um índice construído para representar a soma de coisas tão diversas, o conceito de PIB não poderia deixar de ter ambiguidades metodológicas. Sua concepção e construção exigem que se façam opções necessariamente irrealistas. Como indicador da atividade, primordialmente agrícola e industrial, numa economia avançada da primeira metade do século XX, o conceito desenvolvido por Kuznets era adequado. Citado em todas as esferas, transformado em símbolo de sucesso ou insucesso, utilizado para comparar países, representar sua importância relativa no mundo, motivo de orgulho ou de vergonha nacional, o PIB se transformou numa entidade ubíqua.

Neste início do século XXI, o conceito de PIB já não parece ser tão adequado à realidade contemporânea. Não faz sentido, sobretudo, no papel que lhe foi atribuído na segunda metade do século XX: o de aferidor de desempenho e da qualidade de vida.

Nas economias avançadas, a agricultura e a indústria perderam espaço para os serviços. O dinamismo da atividade econômica não está mais na produção, mas na concepção. Assim como o que ocorreu na agricultura durante o século passado, o aumento da produtividade industrial agora provoca a queda dos preços dos produtos industrializados, cuja participação na renda nacional tem caído rapidamente. Produzir bens é cada dia mais fácil e mais barato. Em contrapartida, sobem os preços e a importância dos serviços, sobretudo daqueles em que a tecnologia ainda não pode substituir o ser humano.

Como o PIB foi desenvolvido para medir primordialmente a produção de bens agrícolas e industriais, as enormes dificuldades de medir o setor de serviços ficaram num segundo plano. Quando tomam a liderança do dinamismo das economias avançadas, as deficiências metodológicas do conceito de PIB já não podem ser desprezadas. Calcular o valor da renda de todos os bens produzidos não é tarefa fácil. O cálculo do valor dos serviços prestados é ainda mais difícil. O preço médio de um corte de cabelo pode ser conhecido, mas qual o valor do serviço prestado por um cirurgião num hospital público? O conceito de PIB se torna muito mais ambíguo, mais difícil de ser definido e estimado, quando não se trata de medir o valor dos bens produzidos, mas, sim, o dos serviços prestados numa sociedade sofisticada contemporânea. Kuznets tinha plena consciência das dificuldades metodológicas a serem enfrentadas na construção de um indicador da renda nacional, assim como das limitações decorrentes das simplificações assumidas.

O que deve ser incluído no PIB? Embora Kuznets pretendesse que devessem ser só os "bens", também alguns "males" foram desde o início incluídos, dada sua importância na produção industrial, como as armas. Kuznets achava que a publicidade não deveria ser incluída, pois não a considerava nem um produto nem um serviço. Por que não incluir a produção de drogas, que movimenta somas importantes em toda parte do mundo? O Reino Unido acaba de modificar o cálculo de seu PIB para incluir os serviços de prostituição, o que fez sua renda aumentar em alguns pontos de percentagem.

O PIB é uma entidade abstrata, uma soma de valores arbitrariamente definidos para acompanhar a recuperação da atividade econômica - na época, essencialmente industrial. Não tinha a pretensão de ser um indicador de bem-estar. Não leva em conta a depreciação do capital utilizado na produção nem o uso de recursos não renováveis nem a poluição produzida, ou qualquer outro aspecto negativo não precificável - as chamadas externalidades - do processo de produção. Ocorre que seu sucesso, sua capacidade de expressar a riqueza de um país de maneira simples, num único índice quantitativo, comparável tanto ao longo dos anos como internacionalmente, deu-lhe uma dimensão muito além da pretendida por seus idealizadores. O PIB é hoje um indicador de desempenho e de bem-estar. Sua taxa de crescimento é interpretada como indicação da velocidade do progresso do país em todos os aspectos da vida. Por isso, o chamado crescimento econômico medido pela expansão do PIB tomou tal importância política.

Crescimento e desigualdade
A questão central do estudo da economia sempre foi a gestão da escassez. Reduzir a escassez, através do aumento da produção e da renda, é o objetivo primordial da atividade econômica, pois a redução da escassez de bens essenciais sempre esteve associada ao aumento do bem-estar.

O estudo dos determinantes do crescimento econômico tem longa tradição e inúmeras vertentes, mas o modelo de referência, ao qual, mesmo que seja para discordar, é preciso fazer menção, é o modelo de Solow-Swan, também conhecido como o modelo neoclássico de crescimento. Durante muitos anos relegado a um segundo plano, diante da prevalência das questões relativas às flutuações macroeconômicas de curto prazo e, mais recentemente, da ênfase em questões microeconômicas, o modelo voltou ao debate político e acadêmico com a publicação do livro "Le Capital au XXI Siècle", do economista francês Thomas Piketty, originalmente editado em 2013 e traduzido para o inglês, no início de 2014, com grande repercussão.

É um texto bem escrito, erudito, com referências literárias e sem fórmulas matemáticas mistificadoras. Ainda assim, um livro acadêmico, de quase 600 páginas, dificilmente se transforma num sucesso de vendas. A única explicação possível é que Piketty tocou um nervo exposto ao argumentar que a economia capitalista contemporânea promove a concentração da renda e da riqueza.

Piketty parte de uma extensa pesquisa empírica. Em colaboração com outros economistas, entre eles Emmanuel Saez e Anthony Atkinso, por mais de uma década coletaram e ordenaram dados, que cobrem vários séculos, até os dias de hoje, relativos aos EUA, Japão e vários países da Europa. Concluem que, nas últimas décadas, em todos eles houve concentração da renda e da riqueza nas mãos dos extremamente ricos - mais especificamente, nas mãos dos que estão entre o 1% mais rico, assim como nas do 0,1% mais rico e, sobretudo, nas do 0,01% mais rico. Mostram que essa é uma tendência generalizada nas economias capitalistas e sustentam que, deixada a correr seu curso, nos levará de volta ao padrão de distribuição da riqueza e à estratificação social do século XIX. Nas últimas três ou quatro décadas, o processo de desconcentração da riqueza observado desde o início do século XX, sobretudo depois da Guerra de 1914, foi interrompido. Para Picketty, sem políticas especificamente voltadas para reverter o processo de reconcentração da riqueza, o ideal democrático das sociedades modernas estará ameaçado.

A força do trabalho de Piketty advém do fato de que, além de coletar e organizar a evidência empírica, ele apresenta um arcabouço intelectual simples para explicá-la. Os fundamentos desse arcabouço remontam ao modelo neoclássico de crescimento. O ponto central de seu argumento é que, se a taxa líquida de retorno do capital for superior à taxa de crescimento da economia, haverá um aumento da relação entre a riqueza - ou o capital - e a renda. Como a taxa de retorno líquido do capital é superior à taxa de crescimento de longo prazo da renda, as economias de mercado têm uma tendência a acumular riqueza, a ter uma relação entre o estoque de riqueza e a renda cada vez mais alta. Como a riqueza é concentrada, a renda do capital é mais concentrada do que a renda do trabalho e, portanto, o aumento da relação capital/renda implica aumento da desigualdade - tendência que só é interrompida em períodos excepcionais, turbulentos, como durante as grandes guerras ou as grandes recessões.

Piketty usa os termos capital (K) e riqueza como equivalentes. A teoria do crescimento adota uma definição mais restrita de capital - apenas bens que fazem parte do processo produtivo, o que exclui coisas como obras de arte, jóoias, propriedades residenciais, entre outras, que são certamente riqueza. Numa análise de longo prazo, a distinção não chega a ser relevante e pode ser desconsiderada.

Como o capital é um estoque e a renda (Y) um fluxo, a relação K/Y tem a dimensão tempo. Os dados mostram que na França e na Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX, a relação K/Y era de aproximadamente 7 anos, ou seja, a riqueza do país era equivalente a 7 anos de renda. Com as duas Grandes Guerras e a Depressão dos anos 30, essa relação caiu significativamente, tendo chegado a 3 anos na França e a 2,5 anos na Inglaterra. Nos EUA, a riqueza nunca foi superior a 5 anos de renda, valor atingido na primeira década do século XX. Logo depois da Segunda Guerra, o estoque de riqueza nos EUA se reduziu para o equivalente a 4 anos de renda. A partir de então, especialmente nas últimas três décadas do século XX, a relação entre riqueza e renda voltou a aumentar. Chegou a 4,5 anos de renda, numa trajetória que, se não for interrompida, a levará a 6 anos de renda, equivalentes aos níveis do século XIX europeu, antes do final do século XXI. O mesmo processo se observa nos demais países desenvolvidos. Na França, em 2010, a riqueza voltou a ser equivalente a 6 anos de renda e na Inglaterra chegou a 5 anos de renda.

Trabalho por capital
O modelo neoclássico de crescimento sustenta que, se os fatores de produção, capital e trabalho, têm rendimentos decrescentes - ou seja, a produtividade cai à medida que são usados mais intensamente - existe uma relação K/Y de equilíbrio de longo-prazo que se perpetua. Essa relação K/Y de longo prazo é dada pela relação entre a taxa de poupança e a taxa de crescimento. Se a economia cresce 4% ao ano e poupa liquidamente, além do necessário para repor a depreciação, 15% da renda, a relação K/Y ficará estável se for igual a 15/4 = 3,75, nível próximo aos observados na Europa em meados do século XX.

Suponhamos, como faz Piketty, que o crescimento de 4% ao ano tenha sido um episódio extraordinário na história da humanidade. Especialmente na segunda metade do século passado, quando o crescimento demográfico atingiu o auge, foi possível crescer a taxas que não poderão ser mantidas. Daqui para a frente, com o crescimento demográfico próximo de zero, ainda que não se subscreva o pessimismo tecnológico de Gordon, a taxa de crescimento não deverá ser superior a 2% ao ano. Nesse caso, a relação K/Y de equilíbrio aumenta para 15/2, ou seja, o equivalente a 7 anos de renda - perto do nível ao qual Piketty estima que deva chegar até o final deste século.

Piketty mostra que, ao longo da história, a taxa de retorno "pura" do capital, ou seja, depois de descontados a inflação, os impostos e todos os tipos de encargos, sempre esteve entre 4 e 5% ao ano. Segundo a teoria, os fatores de produção têm retornos decrescentes; logo, a taxa de retorno do capital deveria cair à medida que se poupa, se investe e o capital se torna mais abundante. Por várias razões, principalmente devido ao progresso tecnológico incorporado ao capital, sua produtividade tem caído pouco. Piketty supõe que possa continuar a cair, mas menos do que proporcionalmente ao aumento do estoque de capital. Quando se multiplica a taxa de retorno do capital, r, pela relação capital/produto, encontra-se a parcela da renda que vai para o capital, ou seja, r.K/Y. Se a taxa de retorno do capital vier a cair para, digamos, 4,5% ao ano, como admite Piketty, mas a relação K/Y subir para 7, a fração da renda destinada ao capital sobe significativamente. Mais precisamente, de acordo com nossos números, de 5% x 3,75 = 18,75%, para 4,5% x 7 = 31,5% da renda.

O que acontece com a parcela do capital na renda quando aumenta a proporção do capital - ou seja, quando a produção fica mais intensiva no uso do capital - é uma questão muito estudada e debatida, mas sem que se tenha chegado a conclusões claras. O fato é que, nas últimas décadas, para a economia americana - paradigma da fronteira tecnológica - a elasticidade de substituição entre os fatores capital e trabalho tem sido mais alta do que se poderia esperar. A parcela da renda apropriada pelo capital tem crescido em relação à parcela do trabalho. O ponto fundamental da contribuição de Piketty para o tema, tão antigo como importante, é que, enquanto a taxa de retorno do capital for superior à taxa de crescimento, a parcela do capital na renda aumentará.

A desigualdade da distribuição da renda entre os fatores capital e trabalho pode não ser tão relevante como a da distribuição da renda pessoal, mas, se o retorno do capital for mais alto que o crescimento da economia, a renda dos que têm capital aumentará mais que a renda dos que vivem do trabalho. Como o capital é mais concentrado que o trabalho, o aumento da parcela da renda atribuída ao capital implica, necessariamente, o aumento da concentração da renda pessoal.

O segundo ponto para o qual Piketty chama a atenção - ainda mais importante que o primeiro, para a sociedade que se delineia - é que, numa economia sem crescimento, o capital, ou a riqueza acumulada no passado, é o principal determinante da renda no presente. Sem crescimento, assim como o que ocorria até a segunda década do século XX, os que na largada têm capital apropriam-se de quase toda a renda, tornando altamente improvável que se possa acumular capital a partir da renda apenas do trabalho. Uma sociedade desigual, mas na qual há grande mobilidade econômica e social, pode ser tolerável. Já uma sociedade desigual, em que não há risco de perder a fortuna herdada, nem esperança de enriquecer, é seguramente incompatível com a democracia.

Velhas e novas fortunas
A tese de Piketty é incontestável: a concentração da riqueza no mundo se reduziu no meio do século XX, mas voltou aumentar nas últimas três décadas. Podem-se discutir suas opções para a homogeneização e a comparação dos dados entre países diferentes e épocas distintas, mas seu meticuloso trabalho de compilação e de divulgação dos dados apenas confirma o que é visível a olho nu.

Piketty não é um radical. Ao contrário, faz questão de dizer-se de uma geração vacinada contra "uma retórica anticapitalista convencional e preguiçosa". Explicita suas dúvidas em relação a todo determinismo econômico, às tendências inabaláveis, sejam elas apocalípticas ou de que tudo acabará no melhor dos mundos. Marx se equivocou ao prever que o capitalismo seria derrotado por suas inexoráveis contradições internas e Kuznets errou ao prever que a distribuição de renda e riqueza no mundo caminhava para uma melhora continua e irreversível. Apesar da reconhecida dificuldade de fazer previsões, continuamos a fazê-las. Continuamos porque, independentemente de virem ou não a ser confirmadas, as previsões contribuem para nossa interpretação do presente, o que inexoravelmente afeta o futuro.

Nem toda a recente concentração de riqueza pode ser explicada pelo argumento de que a taxa de retorno do capital é superior à taxa de crescimento da economia. Piketty dedica muitas páginas a tentar compreender as razões - ou racionalizações - para os superssalários de executivos. Várias outras explicações para a nova concentracão de renda e riqueza poderiam ser elencadas. Há explicações para todos os gostos, mas nenhuma tem a força e a abrangência da tese de Piketty: se o retorno do capital é superior à taxa de crescimento econômico, a renda se concentra. Não há como escapar à lógica do argumento, mas a conclusão mais perturbadora da tese de Piketty é também a mais questionável: a de que, além da concentração da renda, se o retorno do capital é superior à taxa de crescimento, desaparece a possibilidade de novas fortunas. Estaríamos fadados a voltar às sociedades estáticas e estratificadas, baseadas na herança e incompatíveis com a democracia.

Na democracia contemporânea, a desigualdade precisa ser vista como resultado da meritocracia, sem a qual a economia perderia dinamismo e todos seriam prejudicados. A desigualdade pode conviver com a democracia quando percebida como fruto do mérito e do trabalho, mas não como fruto do privilégio e do parentesco.

Se a taxa de retorno do capital é superior à taxa de crescimento econômico, a renda vai se concentrar, mas, para que essa concentração se dê exclusivamente nas mãos dos que já têm capital, é preciso que, além de superior à taxa de crescimento, seu retorno seja estável. Essa era efetivamente a condição do retorno do capital até o século XIX, essencialmente investido em imóveis e títulos públicos, cujas taxas de retorno eram similares e altamente estáveis, próximas de 5% ao ano, como mostram os dados e as referências da literatura no livro de Piketty. No mundo contemporâneo, o retorno do capital pode não ter caído substancialmente, mas se tornou muito mais volátil. A taxa média continua alta, mas há muito mais dispersão em torno da média. Os riscos e as oportunidades do capitalismo contemporâneo permitem tanto destruir uma grande fortuna, como fazer uma grande fortuna a partir de quase nada.

Até o século XIX, o mundo era dos "rentiers". Já o capitalismo financeiro contemporâneo é feito para transferir o dinheiro dos "rentiers" para os empreendedores. Se esses empreendedores são efetivamente criadores de riqueza, ou meramente agentes da transferência de riqueza dos velhos ricos para os novos ricos, é outra questão. De toda forma, no mundo em que a taxa de retorno do capital é superior à taxa de crescimento, a possibilidade de se fazer fortuna - ainda que só às custas das velhas fortunas - contribui para que a desigualdade seja mais tolerável.

O Estado e seus interesses
A proposta de Piketty para reverter a nova tendência de concentração mundial da renda é pouco imaginativa: mais impostos. Propõe que a taxa marginal de imposto sobre a renda seja elevada para níveis de até 80% e que, simultaneamente, seja criado um imposto mundial sobre a riqueza. Nesse ponto, cede à tentação acadêmica de propor uma solução conceitual a ser implementada por um agente racional e isento. Esquece-se de que o Estado da realidade nada tem de isento e racional, mas tem interesses próprios, patrimonialistas, que desvirtuam e inviabilizam propostas que dependam de sua intervenção. Ele próprio reconhece a baixíssima probabilidade de que alguma coisa na linha do que propõe venha a ser implementada. Num mundo interligado pela globalização, impostos sobre a renda e a riqueza significativamente mais altos do que a media mundial levam à fuga de capitais em busca de condições mais favoráveis.

Piketty afirma que, embora não exista um limite teórico para a proporção da renda intermediada pelo Estado, o tolerável, na prática, parece já ter sido atingido. A grande expansão do Estado, quando a carga tributária nos países mais avançados saltou de menos de 10% para mais de 40% da renda nacional, já ocorreu no século XX, nas cinco décadas que se seguiram à Depressão dos anos 30. Hoje, um segundo salto é altamente improvável. Nos países mais avançados, o Estado já atingiu o tamanho máximo compatível com a atual capacidade de sua gestão. É uma forma de reconhecer que os impostos não são a solução. Alternativa mais fecunda seria voltar a examinar a viabilidade de reduzir a concentração e de democratizar a propriedade do capital. Não é claro que a governança de grandes corporações com o capital democraticamente pulverizado seja menos problemática do que a das empresas estatais, mas o tema merece atenção.

Termina-se a leitura do livro de Piketty com a inevitável impressão de que, sob um olhar distante, de mais longo prazo, o século XX, com todas suas crises e tragédias, pode ter sido uma feliz exceção na história da humanidade. O crescimento tirou grande parte da população mundial da miséria e, com a ajuda das guerras e das crises, reduziu a distância entre o povo e os donos do poder e da riqueza. Ao contrário do que sustentava Marx, o capitalismo não levou à concentração de riqueza que terminaria por destruí-lo, mas, sim, a um crescimento acelerado da produção, à redução da escassez, à desconcentração da riqueza e à criação de oportunidades, sem o que a democracia não teria sido possível.

Em "The Spirit Level", publicado em 2012, Richard Wilkinson e Kate Pickett, médicos infectologistas ingleses, sustentam, com base em dados, tanto internacionais quanto para os Estados americanos, que todos os indicadores de saúde, física e emocional, assim como a expectativa de vida, a avaliação subjetiva de bem-estar, os menores índices de criminalidade, de delinquência juvenil, entre muitos outros, estão negativamente correlacionados com a desigualdade da renda e da riqueza. Uma conclusão que não chega a ser nova. Sempre se soube que a desigualdade excessiva é corrosiva, reduz a coesão social e inviabiliza a democracia. O tema andava relativamente esquecido, depois do fracasso das experiências socialistas e com o otimismo provocado pelo rápido crescimento econômico mundial. A crise financeira de 2008 e a nova concentração da renda e da riqueza nos países avançados mudou o quadro.

Tecnologia para o bem e o mal
Há sinais claros de que o crescimento econômico não será mais o mesmo daqui para a frente. Bastaria o componente demográfico para inviabilizar a manutenção das taxas observadas no século passado. Menos crescimento populacional significa menor crescimento econômico. Duas dimensões adicionais devem ser levadas em consideração. A primeira é a dos limites físicos do planeta. Para continuar a crescer, será preciso mudar a composição do que se produz, para menos bens materiais e mais serviços, saúde, educação e entretenimento. A segunda é a da saturação que decorre do aumento da produtividade na fabricação de bens materiais.

No século passado, a proporção dos empregados na agricultura caiu radicalmente - nos EUA, por exemplo, de mais de um terço para menos de 2% da população. O ganho de produtividade na agricultura reduziu a oferta de empregos no campo e provocou um movimento de urbanização acelerada. Grandes contingentes de trabalhadores foram absorvidos pelas cidades, onde estavam os novos empregos, na indústria e nos serviços. O mesmo processo, observado na agricultura durante o século XX, está agora em curso na indústria. A revolução da informática tem reduzido o emprego industrial em toda parte. A perda de empregos industriais tem sido recorrentemente interpretada sob um viés nacionalista autárquico, como fruto da globalização e da concorrência internacional, mas é um processo inevitável, associado ao avanço tecnológico. Novas tecnologias, o uso da informática e da robótica aumentam a produtividade e reduzem o emprego na indústria.

No século passado, as tensões criadas pelo rápido processo de mecanização da agricultura foram amenizadas pela crescimento industrial. Hoje, não há nenhum setor em crescimento acelerado capaz de compensar a redução do emprego industrial. Também no comércio está em curso uma verdadeira revolução, provocada pela informática e pela internet. Seu impacto sobre a criação de empregos pode ser tão ou mais dramático do que na indústria. Mesmo o setor de serviços, em tese o único passível de crescer e absorver mão de obra, não está ao abrigo da revolução tecnológica. O impacto da internet na mídia, na música, no cinema, assim como no setor editorial, já é dramático. Em breve, a educação e os transportes serão igualmente transformados. A tecnologia contemporânea é desorganizadora, porque torna abundantes, disponíveis a preço praticamente nulo, a comunicação, a música, o entretenimento e até mesmo a educação. O resultado sobre o produto interno e o crescimento da renda, convencionalmente medidos, é negativo, mas com certeza não sobre a qualidade de vida.

O desafio da escassez relativa
A economia capitalista do século XX sempre foi propensa às crises de desequilíbrio, associadas à insuficiência da demanda, mas o remédio keynesiano, desenvolvido depois da Depressão dos anos 30, foi suficiente para garantir o crescimento sustentado até o início deste século XXI. O Estado, como investidor, consumidor, assistencialista, transferidor de renda e emprestador de última instância, esteve sempre a postos para intervir, tanto diante da insuficiência da demanda, quanto dos excessos de passivos depois da euforia. O preço desse papel estabilizador foi o crescimento secular de sua participação na economia e da dívida pública.

Parece que chegamos a um ponto de inflexão. O desafio econômico clássico, de produzir o máximo com o mínimo de recursos e, subsidiariamente, garantir que todos tenham acesso à sua fatia do produzido, parece ter tomado novos contornos. Produzir o necessário está a caminho de deixar de ser um problema, mas a questão subsidiária, de garantir que todos tenham acesso ao produzido, se tornou a questão central do mundo contemporâneo. Não há razão para crer que seus desafios sejam menos complexos que o da escassez absoluta. Compreende-se o impacto causado pela tese de Piketty. Uma das dimensões mais perturbadoras dessa nova realidade é a perspectiva de congelar, ou mesmo agravar, a desigualdade da renda e da riqueza entre países. O progresso tecnológico continua a aumentar a produtividade do capital, impedindo a queda da sua taxa de retorno, mas não é mais capaz de sustentar a demanda e o emprego. O resultado é menos crescimento e seu corolário, demonstrado por Piketty, é a concentração da renda e da riqueza.

A era da escassez, ao menos como a conhecemos, pode ter chegado ao fim. Passamos da era da escassez absoluta para a da escassez relativa. Os problemas econômicos continuam, mas tomam novos contornos. Para compreender e enfrentar os desafios desta nova realidade, o primeiro passo é rever o arcabouço conceitual e a métrica desenvolvidos para outros tempos e outra realidade. Conceitos e métricas que já cumpriram sua função, mas que hoje são anacrônicos, dificultam a compreensão do presente e distorcem nossa capacidade de formulação para o futuro.

André Lara Resende é economista

A íntegra deste artigo será publicada na revista "Política Externa" (vol. 23, número 2, out/nov/dez 2014)

Nenhum comentário: