sábado, 16 de agosto de 2014

Luiz Sérgio Henriques A crueldade de agosto

- O Estado de S. Paulo

Observando nosso imaginário político, talvez agosto, e não abril, ao contrário do que supunha T.S. Eliot, seja o mais cruel dos meses, aquele que nos coloca violentamente, do ponto de vista simbólico, diante da Roda da Fortuna, a misturar memória histórica, névoa do presente e futuro indecifrável. A morte de Eduardo Campos, além do drama humano que comporta e envolve todos os que o acompanhavam, acrescenta elementos adicionais de interrogação ao atual período pré-eleitoral, que, mal comparando, se assemelha àquela drôle de guerre que antecedeu, em 1939-1940, os combates propriamente ditos.

Em nossa particular "guerra estranha", o contexto pré-eleitoral estava, como ainda está, aberto a todos os desenvolvimentos, não excluído o que necessariamente decorre de traço elementar de um regime democrático: a existência de oposição ou oposições viáveis e capazes de vencer legitimamente, fato catalogado por Bobbio em sua definição mínima de democracia. Mas as notícias vindas das primeiras escaramuças e sondagens são mais do que ambíguas: um desejo de mudança da parte majoritária do eleitorado se associa ao favoritismo da presidente Dilma. A possibilidade de uma vitória da presidente em primeiro turno não pode ser cancelada em absoluto, assim como, em segundo turno, parecem crescer as chances de qualquer um dos oposicionistas mais bem colocados. A alta rejeição a um estilo de mando não implica, como era de esperar, a adesão entusiasmada às alternativas propostas. E assim poderíamos prosseguir amplamente.

Mais preocupante do que a indeterminação eleitoral, afinal inscrita na própria natureza das competições, especialmente no início, são os sinais de apatia da sociedade. Esses sinais se mostram ora no elevado número de cidadãos que declaram o voto em branco ou nulo, ou a decisão de se abster, ora no dado, já incontornável, da queda do número de jovens cujo voto é facultativo. Uma democracia de baixa intensidade, dir-se-ia, em que o cinismo, certo ou erradamente atribuído à "classe política" e aos governantes, gera e consolida a indiferença do homem comum: ruas e instituições parecem se afastar, num movimento que, levado além de certo ponto, solapa as bases de qualquer democracia, mesmo se definirmos esta última de acordo com as regras mínimas de Bobbio.

O visível mal-estar da sociedade, que veio à tona há pouco mais de um ano nas manifestações de junho, logo esvaziadas pelas estratégias de "ação direta" e seu cortejo de violências, convive paradoxalmente com um fato destinado a marcar época, a saber, a ascensão da esquerda petista ao poder central. Uma esquerda com pretensões de refundar o País, de produzir um novo começo de sua História, nisso não inteiramente distante da centro-esquerda de Fernando Henrique com a ideia de reinventar o capitalismo além da "era Vargas". Hipóteses para a difusa insatisfação coletiva não faltam e uma delas reside exatamente na deliberada exacerbação das diferenças entre esquerda e centro-esquerda, a ponto de tucanos e petistas praticamente monopolizarem a disputa presidencial no período pós-democratização, exceção feita à aparição meteórica de Collor de Mello em 1989.

É provável que na cultura política de tipo sindicalista, complementada pelas frações de extrema esquerda que conformaram o petismo, devam ser buscadas primariamente raízes e razões de tal exacerbação artificial. Rendosa eleitoralmente, ao garantir para o petismo vitórias insofismáveis em 2002, 2006 e 2010, a contraposição frontal com os tucanos, de fato, empobrece a esfera pública e faz a vida política girar permanentemente em falso, segundo lógica absurda em contexto democrático, ao abrir abismo intransponível entre "amigos" e "inimigos".

No plano institucional, a estratégia implicou a decapitação dos partidos tradicionais de direita ou centro-direita, seja pela cooptação direta, seja por razias, como a criação do PSD, que esvaziaram forças oposicionistas praticamente até a irrelevância. No plano da relação com a sociedade, a mesma disposição para a fagocitose, o enquadramento e a subjugação, como no decreto sobre os conselhos populares, no qual se adivinha uma mal disfarçada concepção estatista da política. Esta, por definição, antes hegemonista do que verdadeiramente hegemônica, convive mal com a dialética democrática e concede reduzido espaço até mesmo aos aliados.

Esse é o quadro que viu nascer nos últimos meses brechas e inquietações no bloco de poder. Um partido histórico, ainda que fragilizado e por vezes irreconhecível, como o PMDB, mostra-se recorrentemente arredio a aventuras extraconstitucionais, como se, a despeito de si mesmo, guardasse a memória genética da saga da resistência nos anos de chumbo. E não pode ser outro o legado de Eduardo Campos e sua terceira via, em diálogo não isento de conflitos com o ambientalismo de Marina da Silva, ainda não testado em posições de governo, mas certamente em linha com novíssimas exigências de requalificação ecológica da economia.

Pode-se argumentar que os últimos 12 anos foram de intensa incorporação social, ainda que seja muito pouco rigoroso deixar de correlacionar tal incorporação e a relativa prosperidade de um país produtor de matérias-primas num mundo assombrado pelo avanço do "capitalismo perfeito" da China - um capitalismo sem sindicatos e com um só partido. Não terá sido essa, no entanto, a contribuição decisiva da esquerda para a cultura política brasileira. Tudo somado, a posição de Campos, apontando para a recuperação atualizada do velho PSB, implica a postulação de uma outra esquerda, mais respeitosa das instituições e dos procedimentos da democracia dita formal - na verdade, o caminho real para as mudanças substantivas.

Tradutor e ensaísta,É um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil

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