terça-feira, 5 de agosto de 2014

Alberto Aggio: O impasse venezuelano

- O Estado de S. Paulo

Desde a ascensão de Hugo Chávez ao poder na Venezuela, no final de 1998, a América Latina foi impactada pela mística da revolução bolivariana, depois identificada pela fórmula "socialismo do século 21". Visto como mais uma contestação à teorização do "fim da História", como leitura do mundo após o colapso do "comunismo histórico", bem como da noção de revolução como fiat da História, a Venezuela de Chávez passou a ser o epicentro de uma América Latina que voltava a desafiar o sentido do tempo histórico.

Bem-sucedido na Venezuela, o chavismo estabeleceu-se como referência de novos governos eleitos no Equador, na Bolívia e na Nicarágua, além de influenciar parcelas significativas de intelectuais e políticos de esquerda na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil. Mesmo combalido pelo desaparecimento da sua liderança maior, em 2013, e pela profunda crise econômica que vem alimentando manifestações de descontentamento ao largo do país, o chavismo parece ainda pairar sobre o continente como um espectro difuso e belicoso.

Com Chávez no poder a América Latina, depois da vaga democratizante das duas últimas décadas do século 20, voltou a falar de revolução. Sem se afastar de Cuba, o chavismo não buscou uma reiteração da revolução cubana de 1959, tampouco de quaisquer outras experiências comunistas e socialistas do século passado. O chavismo procurou instituir seus fundamentos a partir de um mítico amalgama ideológico que alberga militarismo, marxismo, cristianismo, guevarismo e latino-americanismo, dentre outras linhagens, todas mobilizadas pragmaticamente para garantir sua sobrevivência no poder.

Atento à cena mundial, Chávez reconheceu que nenhuma transformação de caráter socialista poderia ser realizada na Venezuela dispensando alguns requisitos básicos da democracia política, dentre eles uma ordem constitucional legitimada - a nova Constituição bolivariana de 1999 - e uma regularidade no processo eleitoral, ainda que privilegiando elementos de democracia participativa e direta. Seu grande desafio foi estabelecer sua legitimidade como revolucionária e democrática, simultaneamente.

A "revolução chavista" baseia-se num conjunto de políticas voltadas para a diminuição da pobreza por meio da distribuição da renda petrolífera. A presença do Estado na economia garantiu crédito e consumo aos mais pobres, o que possibilitou a diminuição da pobreza e da indigência no país, conforme dados da Cepal. Porém, quando sobreveio a crise internacional em 2009, a economia venezuelana viu-se sem alternativas, com perda de crescimento, inflação e desabastecimento. A violência social recrudesceu e se somou à violência política do Estado e dos "coletivos chavistas" contra opositores e manifestantes.

No plano político, o chavismo garantiu aos venezuelanos parâmetros mínimos de democracia, com eleições, plebiscitos, Parlamento, etc.. Todavia é facilmente observável que outros requisitos fundamentais da vida democrática foram deslocados do núcleo central do projeto, como a autonomia do Poder Judiciário, a alternância no poder, o respeito à minoria política, a ampla liberdade de imprensa e de expressão, entre outros exemplos. O chavismo manifesta assim imensas dificuldades para sustentar sua legitimidade democrática.

A despeito das vitórias de Chávez em 2000 e 2006 e da eleição de Nicolás Maduro em 2012, o chavismo segue aprisionado em sua armadilha: fazer uma (duvidosa) revolução por meios democráticos que não se ajustam integralmente nem ao seu projeto nem à sua prática. A crise econômica e as denúncias de corrupção vêm produzindo desavenças no governo, o que levou Maduro a substituir ministros e prometer um rearranjo completo no governo. Esse cenário tende a se agravar, uma vez que, além de enfrentar as oposições, o governo começa a apresentar fissuras internas com a aberta dissidência de ex-comandantes chavistas. Para alguns deles, a manutenção de Maduro na presidência mostra-se hoje "um sacrifício inútil".

Nessas circunstâncias, pode-se vislumbrar o colapso do chavismo? Difícil saber. Especialmente em razão das discordâncias no interior da heterogênea oposição venezuelana. Se em seu seio existem os que pensam irrealisticamente numa solução militar contra o governo, a Mesa de Unidade Democrática (MUD), a maior coalizão eleitoral da oposição, crê que, ao contrário, é necessário respeitar as regras do jogo estabelecidas pela Constituição e se mostra disposta a negociar com Maduro, mesmo sendo acusada de "colaboracionismo". Por outro lado, setores mais radicalizados da oposição continuam a adotar práticas violentas, tal como os "coletivos chavistas", ainda que com menor intensidade, e da mesma forma fazem arder ruas, praças e câmpus universitários numa luta incessante sem abertura para nenhum consenso.

A sedução pela confrontação não é pequena e enquanto o governo caracteriza todos os opositores como fascistas, o partido liderado por Leopoldo López (Voluntad Popular), sem aderir a nenhuma solução militar, flerta com uma insurreição popular, germinada nas manifestações de protesto, para pôr abaixo o governo de Maduro. O resultado desse braço de ferro tem sido mais violência, prisões e repressão. Uma aposta diferenciada emerge, por fim, do Primero Justicia, partido liderado por Henrique Capriles, governador do Estado de Miranda, que procura atuar no interior da constitucionalidade, obedecendo à agenda institucional. O objetivo é disputar a base social do chavismo, em especial seus organizadores e militantes, que parecem não encontrar espaço na luta pelo poder instalada no interior do governo chavista.

Aferrado à sua trajetória, o "chavismo sem Chávez" busca hoje recuperar uma unidade que vem perdendo em meio a suas próprias contradições. De outro lado, a unidade da oposição mostra-se ainda mais incógnita.

Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp-Franca

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