quarta-feira, 2 de julho de 2014

Rosângela Bittar: Depois da Copa

• À exceção de velhos cacoetes, um viva às celebrações

- Valor Econômico

Feliz e aliviado, já com forças para tripudiar como gosta e atribuir culpa aos pessimistas pelas previsões de incompetência brasileira para organizar evento de tal envergadura, o governo registra, neste momento, faltando ainda 10 dias para o fim da Copa do Mundo de 2014, a conclusão de que tudo deu certo. E deu mesmo, dentro e fora do campo, no que era de sua alçada e da alçada da Fifa, o que era função dos Estados e dos municípios, e no que dependia da proteção dos santos e divindades. Mesmo se o Brasil sair antes da hora final, e nesse caso os black blocs se encorajarem a desafiar a alma brasileira na última semana do Mundial, já terá dado tudo certo, estruturalmente certo. O governo reconhece que seria mais prejudicado se os problemas aparecessem mais fora que dentro do campo. A taça vai para o conjunto da obra.

Para faturar na política esse sucesso todo, porém, e afinal foi para isso que brigou para trazer a Copa, o ex-presidente Lula, e a presidente Dilma, que estavam recolhidos e silenciosos quanto ao tema à espera da prova dos nove, começam por atribuir aos seus adversários políticos, à imprensa brasileira, e sua enorme e irresistível influência sobre o negativismo da imprensa estrangeira - os culpados de sempre na visão da legenda do poder - previsões da catástrofe que acabou não acontecendo. Argumento que só fica de pé como farsa de campanha eleitoral, pois nem a Fifa anteviu derrocada tão completa, embora ache que são os governos, e não os atletas, que devem jogar bola nos seus torneios.

Mas aí é o DNA, nada há o que fazer. Se a imprensa não for culpada, não são fogos caramuru do PT.

E o que foi mesmo que deu certo? No campo, o belo futebol apresentado nesta Copa do Mundo, a excelência técnica, o modelo ofensivo que permitiu tantos e tantos gols, uma das três maiores médias de todos os tempos, e para 'nosotros' e africanos, a volta da alegria e do gingado, marcas nacionais adormecidas por fases de brutalidade do esporte.

Fora do campo, a estrutura aeroportuária, a locomoção nas cidades, os hotéis, a recepção ao turista, as condições dos estádios, a segurança pública. Tudo deu tão certo que é natural o desejo, agora, de que essas condições se perpetuem e continuem depois da Copa. Os desconfiados já fizeram a analogia: "Imagine depois da Copa", em referência ao "Imagine na Copa", quando se temia o pior. Agora, teme-se que o bem-bom se perca, que o voo não saia mais no horário, que a polícia não esteja vigilante à travessia para o estacionamento, que o hospital não receba qualquer um que passar mal na rua.

Faltou luz em um estádio; o gramado saltou na chuteira; filas de quilômetro nos restaurantes e lanchonetes; falta d'água nos banheiros da estreia; os estádios elefantes brancos; a invasão do Maracanã... Ora, o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, a maior autoridade do governo na coordenação do evento, líder do comitê organizador, com a autoridade de quem fez, em dezembro do ano passado, a este jornal, a previsão de que o Brasil faria uma grande Copa, não a Copa da Alemanha, não a da África do Sul, mas a Copa brasileira, ao nosso jeito, descreve, com a calma que lhe é peculiar:

"Me disseram, no início do torneio: está tudo bem, relaxa. Não dá, tem que estar tudo bem todos os dias. A segurança pública, o trânsito, os hotéis, os serviços, os transportes, tudo tem que funcionar todos os dias". Aqueles problemas relacionados acima, colhidos no noticiário, são por ele desconsiderados: "Os gramados são os melhores do mundo e saem mesmo, em qualquer lugar; a energia piscou, durante o dia, em um teste, apenas; banheiro sem água foi residual; filas em lanchonetes há em Wimbledon também e em qualquer jogo de campeonato nacional; a falha do Maracanã decorreu da opção por uma organização menos militarizada, menos truculenta", e por aí vai, numa resposta objetiva para cada questão.

Aldo concorda com o PT na avaliação de que a imprensa criou a ideia da sublevação contra a Copa (ele, também, não admite que foi o movimento "não vai ter copa", nem o "passe livre", nem os blocs, nem a Fifa).

"Isso faz parte do jogo, foi assim na Independência, na República, na abolição, em 30, em 64, na redemocratização. Quando a sociedade se divide, a imprensa também se divide", concede.

Mas não quer olhar para trás: "Os aeroportos têm funcionado, o sistema de tráfego tem funcionado, a hospedagem, a segurança". Se há turistas dormindo na praia é por falta de dinheiro, não de vaga em hotel. O governo providenciou até caminhão-pipa para o banho dos que se hospedaram na rua.

A realidade superou a expectativa do ministro do Esporte. "O Fabio Capello, um dos papas do ramo [italiano, hoje técnico da Rússia, um dos maiores do mundo, já dirigiu os times da Inglaterra e da Itália] disse que esta Copa foi a de maior nível técnico que já viu. E fora do campo, tudo o que precisava funcionar, funcionou", resume.

O ministro dá um exemplo do nível de detalhes dos cuidados na gestão do evento: "Ia chegar a seleção da Austrália? Está vindo de onde? Por onde? Vai fazer alfândega onde? Espírito Santo não tem aeroporto internacional, vai fazer em Curitiba. Os batedores, a postos, são treinados há 20 anos, não são voluntários. Os centros de comando e controle já verificaram toda a segurança? Os hotéis estão funcionando? O prefeito organizou a recepção? A imprensa está tendo acesso? A Anvisa está a postos? A seleção pegou o ônibus? Entrou no hotel?"

Segundo Aldo, havia gente querendo guerra com o sistema hoteleiro até, depois de duas reuniões, se convencerem de que haveria superoferta e não falta de acomodações. Na Copa, todas as atividades que não são Copa são canceladas. "Sobram hotéis e vaga em avião", informa.

O Comitê Olímpico Internacional levou ao governo brasileiro sua expectativa para que a Olimpíada tenha pelo menos a metade do sucesso da Copa. Até nos Estados Unidos, país líder em medalhas distribuídas pelo COI, a Copa bateu, em público na TV, a partida final da NBA, o campeonato de basquete americano.

Para o público voyeur, ainda teve o bônus do ar de país atraente ao turismo que se respirou nesses dias de levas de turistas pelas ruas, com suas cantorias, máquinas e garrafas em punho, shoppings e restaurantes lotados diante da TV. Em Brasília, então, onde não é comum ver-se vivalma, o apito final sobrecarregará psicólogos e psicanalistas. Mais ainda porque dará lugar à propaganda eleitoral dos candidatos às eleições de outubro.

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