domingo, 1 de junho de 2014

José Miguel Insulza Desigualdade, democracia e inclusão

• Um terço da população da América Latina vive em domicílios cuja renda varia entre US$ 4 e US$ 10 por dia

- O Globo

A decisão do governo do Paraguai de dedicar a Assembleia Geral da OEA de 2014 aos temas do desenvolvimento e da inclusão social ocorre em um momento muito oportuno. O recente crescimento em nossa região foi importante e, nesse contexto, o atraso da plena inclusão de todos os cidadãos nos benefícios do desenvolvimento adquire importância fundamental. Há muitos anos afirmamos que, além das fragilidades que ainda existem em nossas instituições e em nossa atividade política, a plena vigência da democracia na América padece de um grave problema de desigualdade, que afeta não apenas a convivência democrática, mas que também é um obstáculo ao crescimento saudável.

Apesar de, na última década, a quantidade de pobres ter diminuído consideravelmente, muitos dos que conseguiram dar esse importante passo ainda enfrentam condições de extraordinária precariedade. Aproximadamente um terço da população total da América Latina vive em domicílios cuja renda varia entre US$ 4 e US$ 10 por dia. Essas pessoas já saíram da pobreza que ainda aflige mais de 167 milhões de latino-americanos, porém chamá-los de “setores médios” não faz sentido. Na realidade, são muitos milhões de “não pobres”, que estão em uma faixa de renda que ainda os mantém em situação de extrema vulnerabilidade.

Não obstante grande parte do recente alarme gerado pela desigualdade ter se concentrado em aspectos econômicos, especialmente na distribuição de renda, é importante precisar que essa desigualdade também engloba outras áreas da atividade social, com origens que, em muitos casos, não provêm de uma pobreza maior ou menor. De fato, a desigualdade não se expressa apenas pela enorme diversidade do poder aquisitivo em termos da renda de uma pessoa, mas, sim, resulta da discriminação de classe, de raça, de gênero, de origem geográfica, de capacidade física e de outras mais que a transformam em um fenômeno multidimensional e a tornam incompatível com os nossos ideais democráticos.

Ser mulher, ser pobre, ser indígena, ser afro-americano, ser migrante, ser deficiente, ser trabalhador informal significa exercer, na sociedade, uma posição inicial desvantajosa em relação àqueles que não têm esse gênero, não têm essa condição econômica, não são dessa raça, não têm essa condição migratória, não têm essas características físicas nem exercem essa atividade laboral. Em geral, essas categorias abarcam diversas condições econômicas no que se refere ao acesso a serviços, à proteção pública e a oportunidades de educação ou emprego. Em termos de categoria social, poderá ter uma origem distinta, porém, o efeito principal será tornar essas pessoas mais vulneráveis ao abuso, à exclusão e/ou à discriminação.

Já se foi o tempo em que se pensava que a interação entre democracia e economia de mercado reduziria as desigualdades. Ao contrário, a enorme injustiça que existe em nossos países em matéria de distribuição de riqueza e de acesso aos bens sociais prejudica enormemente o tecido democrático. Por esse motivo, o debate deixou de ser puramente econômico e passou ao campo das políticas públicas. As decisões políticas tomadas pelos estados para melhorar a distribuição é que tornam a economia de mercado compatível com a democracia, e cabe aos estados encontrar um equilíbrio adequado, no âmbito do estado de direito, entre crescimento e redução da desigualdade.

José Miguel Insulza é secretário-geral da OEA

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