sexta-feira, 16 de maio de 2014

Míriam Leitão: A luz no dia difícil

- O Globo

O país parece tão confuso. Manifestações,greves, bloqueios de ruas, os estrangeiros chegando e nada pronto ainda. De repente, uma luz no noticiário: a Justiça Federal aceitou denúncia contra os envolvidos no atentado do Riocentro. Isso foi há muito tempo. Foi há 33 anos. Por que trazer de volta esse caso? Ele é um dos mais emblemáticos episódios da ditadura militar.

O que tem isso a ver com o desconforto de ficar horas para atravessar um engarrafamento que pode surgir a qualquer momento por causa de uma manifestação? Ou ter que sair andando por falta de transporte? Ter medo de ser apanhado por um rojão de bombas de gás? Toda essa agitação vai passar. Pode-se superar cada greve, cada movimento e protesto — até os mais oportunistas — preservando as leis do país.

Existem temores, sim. De que mais algum inocente seja atingido, de que a Polícia se exceda, de que os bandidos se aproveitem. Mas tudo será, mais dia menos dia, resolvido.

Há a preocupação com os retrocessos na economia que as decisões de controle de preço representam.

Há represamento de tarifas de energia e combustível, que é escondido através de gasto público ou perda de receita das empresas.

Cada solução que inventam tem produzido outro desajuste. No futuro, haverá correções sérias a serem feitas. Seria insensatez manter os atuais desequilíbrios minando a economia brasileira.

A grande certeza da democracia é que, mesmo defeituosa, ela acabará encontrando a sua maneira de amortecer as tensões, resolver os conflitos e eleger vencedores.

E uma ditadura, o que pode fazer? Programar um atentado num show de música para estudantes, num grande centro de convenções, que poderia matar inúmeros jovens. O atentado do Riocentro é emblemático.

Foi planejado já no fim do regime. Era apenas a contagem regressiva até o fim daquele governo infeliz de um general que gostava de cavalo, mas não de povo, e que pediu que o esquecessem.

Ele foi lembrado agora, quando este jornal trouxe à luz uma informação histórica: a de que a cúpula do governo fora informada de tudo. O próprio presidente Figueiredo soubera do atentado.

Não era correto definir os autores de atentados assim de “bolsões sinceros porém radicais”, como eles diziam. Havia bolsões sinceramente radicais na defesa do regime e acobertados pelos altos escalões.

Foi impressionante, aquele caso, pela longa impunidade, exibida nos jogos da praia, de Wilson Luiz Chaves Machado. Ele estava ao lado do sargento em cujo colo a bomba explodiu. E teve uma vida tranquila, certo da impunidade. Ele sempre foi blindado pelo Exército contra qualquer pergunta constrangedora. E sempre manteve o seu silêncio providencial. Os outros da lista dos que ontem se tornaram réus, como o general Newton Cruz, mostram que havia a cadeia de comando consciente de tudo o que faziam os bolsões.

A Lei da Anistia era usada como se fosse uma segunda blindagem nesse país tão pouco afeito a enfrentar seu passado. No caso, é tão estranho o uso desse argumento porque a Lei da Anistia é de 1979 e perdoava os crimes até então cometidos. O atentado do Riocentro não havia acontecido ainda, é de 1981. Uma lei pode perdoar um crime ainda não cometido no período de sua entrada em vigor? A Justiça Federal do Rio, em decisão histórica, aceitou denúncia do Ministério Público, tornou réus e abriu processos contra o coronel Wilson Machado e outros cinco acusados. A juíza Ana Paula Vieira de Carvalho considerou que aquele foi um crime contra a humanidade.

A decisão tão esperada chegou num dia de manifestações no Brasil, em que várias insatisfações vieram à tona. A coincidência ajuda a mostrar que, qualquer que seja o dia difícil numa democracia, ele será sempre melhor do que o Estado totalitário, em seu mais alto escalão, armar seus agentes e mandá-los sorrateiramente com bombas para explodir no meio de jovens que apenas assistiam um show musical. A bomba explodiu antes, mas o país teve que esperar 33 anos pela Justiça. E ontem foi apenas o primeiro passo.

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