sábado, 17 de maio de 2014

A Copa e a avenida: O Estado de S. Paulo - Editorial

No dia 17 de junho do ano passado, 230 mil pessoas saíram às ruas de 12 capitais brasileiras para dar vazão, como se disse à época, à vontade de falar - contra o aumento das passagens de ônibus, o descalabro dos serviços públicos, a indiferença dos governantes diante da dureza do cotidiano para a grande maioria da população, o colapso da representatividade do sistema político e a gastança com a Copa. Aquela não foi a primeira nem a derradeira das manifestações tidas como prova de que "o gigante acordou", na jubilosa avaliação dos seus participantes mais otimistas.

Onze meses menos dois dias depois, foram apenas 21 mil as pessoas, desigualmente distribuídas por 7 capitais, que se animaram a dar visibilidade a um rol de protestos e reivindicações em cujo centro estaria a denúncia das "injustiças da Copa". A causa, porém, não mobilizou mais de 5,5 mil ativistas, concentrados em Belo Horizonte (2 mil), Rio e São Paulo (1,5 mil em cada uma delas). Aqui, o dia foi dos aproximadamente 8 mil professores municipais, em quilométrica passeata por melhores salários, e dos 6 mil sem-teto que promoveram concentrações e bloqueios em seis áreas da cidade.

Metalúrgicos circularam por cinco outros pontos, enquanto umas poucas centenas de ex-funcionários de uma associação privada também fizeram a sua parte para o intermitente bloqueio da Avenida Paulista, o coração da capital. Está claro que muita coisa se transformou de um ano para cá em matéria de expressão pública seja lá de que bandeira for. Não só o número de manifestantes ficou reduzido a uma fração daqueles das jornadas de junho - que chegaram a ser chamadas "históricas" -, como, principalmente, mudou o seu perfil e mudaram as suas palavras de ordem.

O que havia então era um desabafo em grande medida espontâneo de uma massa composta na esmagadora maioria por jovens em defesa do interesse coletivo desatendido por um Estado pronto a gastar uma fortuna com o Mundial, mas avaro e negligente quando se trata de investir na qualidade de vida do povo, cobrando o que seria demais dos usuários de transporte coletivo e respeitando de menos os pacientes do SUS. O que prevalece agora, a julgar pelo que se acabou de ver, são setores organizados em defesa de interesses delimitados (acesso à moradia, por exemplo) ou corporações profissionais (como professores) com suas periódicas demandas por aumento salarial.

Do espírito de junho, como se queira julgá-lo, ficaram os minoritários protestos contra a Copa - com o seu escasso senso de realidade e elevada propensão para o confronto e o vandalismo. Se agora servem quase só para dar carona a pressões de terceiros por suas cobranças próprias, é improvável que consigam recobrar força durante o campeonato a ponto de provocar os temidos distúrbios de repercussão internacional. Como diz a presidente Dilma Rousseff, "na hora de a onça beber água este país vai endoidar". Até os líderes dos sem-teto falam em "um protesto a cada semana até a Copa".

De qualquer modo, ela virá e se irá. Mas permanecerá - ou, antes, poderá ficar pior - a truculência com que, sejam multidões ou grupelhos, os interessados em promover tais ou quais verdades têm se apoderado do sempre concorrido espaço público nos pontos nevrálgicos das metrópoles brasileiras, cerceando o direito de ir e vir que a Constituição a todos assegura. Manifestações pacíficas são legítimas; são unha e carne do sistema democrático. Mas a liberdade coletiva de expressão não pode ser exercida ao bel-prazer de quem quer que pretenda se exprimir a céu aberto.

A competição pelo uso da rua e as tensões que disso decorrem são inerente ao mundo urbano. Tornam imprescindível, pois, a intervenção do poder público para regulamentar, no tempo e no espaço, o exercício do direito de manifestação para que não tolha além da conta os afazeres e o deslocamento dos demais. A omissão das autoridades em face da tomada da Paulista é inaceitável: nenhum dos sucessivos grupos que transtornaram a mais importante via paulistana, em cujas proximidades, aliás, funcionam numerosos hospitais, precisou pedir autorização para se escarrapachar, literalmente, na avenida. Foi uma violência consentida.

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