sábado, 26 de abril de 2014

Portugal relembra dividido os 40 anos da Revolução dos Cravos

Nos 40 anos de volta à democracia, país tem militares e governos em lados opostos; racha é expresso até no visual

Jair Rattner – O Globo

LISBOA — Nos últimos cem anos nenhum evento foi mais importante em Portugal que a Revolução dos Cravos, que completou 40 anos ontem. Mesmo assim o país comemorou a data dividido. De um lado ficaram os militares que organizaram e dirigiram o movimento que fez com que Portugal voltasse a ser uma democracia, após 48 anos de ditadura. Do outro, o governo, atual maioria, que segue o programa de resgate financeiro do país, elaborado pela Comissão Europeia, pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Central Europeu.

Os militares que fizeram a revolução não compareceram às cerimônias oficiais no parlamento — disseram que só estariam presentes se pudessem fazer discurso, o que habitualmente fica reservado ao presidente e aos partidos políticos. Em vez disso, eles se reuniram na Associação 25 de Abril e organizaram uma celebração no Largo do Carmo, lugar onde os dirigentes do antigo regime se renderam. Vários políticos de esquerda e centro-esquerda, incluindo o ex-presidente e fundador do Partido Socialista, Mário Soares, marcaram presença no evento alternativo e não foram ao Parlamento.

Racha expresso até no visual
A divisão está estampada até nos cartazes de cada um dos lados. Enquanto o símbolo das comemorações da revolução no Parlamento é o cravo vermelho, a Associação 25 de Abril escolheu um cartaz com fundo vermelho e um enorme ponto de interrogação amarelo no centro, uma espécie de questionamento a respeito do futuro. A acusação por parte dos militares é que o governo atual perdeu a legitimidade.

— Temos um poder que se comporta como herdeiro dos vencidos no 25 de abril. Hoje é legítimo o direito à resistência, o direito à desobediência e o direito à insubordinação. Não defendemos um novo golpe militar, mas esta situação é impossível de continuar. Estão vendendo o país por uma ninharia — afirma o presidente da Associação 25 de Abril, o tenente-coronel da reserva Vasco Lourenço.

O atual sentimento de revolta dos militares é fruto do que eles consideram uma traição aos ideais da revolução. O programa do movimento era resumido em três “D”: democratizar, descolonizar e desenvolver o país. O país já deu a independência a sua colônias na África e na Ásia, tem uma democracia parlamentar que funciona com alternância entre partidos no poder e os índices de desenvolvimento do país deram um salto. Mas muitas conquistas do 25 de abril estão sendo questionadas por conta do programa de austeridade que o governo está seguindo — o terceiro resgate do país desde que voltou a ser uma democracia.

Para cada grupo, um significado
Em seu discurso do 25 de abril, Luís Montenegro, o líder parlamentar do partido governista social democrata, afirmou que o governo está fazendo o mesmo que os militares fizeram: “Há 40 anos saímos de uma longa noite de ditadura. Hoje, queremos e vamos sair de uma outra noite, a terceira que vivemos em 40 anos, em que hipotecamos a nossa liberdade e em que fomos obrigados a viver um tempo especial de sofrimento”.

Cada grupo político procura dar um significado diferente à Revolução dos Cravos. Enquanto a esquerda defende que a principal herança do 25 de abril são as conquistas sociais, em um discurso em março deste ano, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho dirigiu-se ao maior partido da oposição, o Socialista, dizendo que a maior homenagem que poderia ser feita à revolução seria um consenso para seguir as metas do programa de austeridade, que tem, entre as propostas, a de reduzir a escolaridade gratuita de 12 para 9 anos, o aumento das taxas para o atendimento nos hospitais públicos e a redução do valor das aposentadorias.

Alguns dados indicam o desenvolvimento ocorrido após a Revolução dos Cravos. O analfabetismo alcançava 33% da população em 1974 e hoje é residual, abaixo de 8% e apenas na população mais idosa. Em 1970, só 7% dos jovens entre 18 e 22 anos estavam na universidade, e no ano 2000 essa cifra chegava a 53%. Em 1970, a mortalidade infantil chegava a 55 por mil em Portugal e em 2012 ficou em 3,4 por mil — uma das dez mais baixas do mundo. Em 1970 a expectativa de vida era de 67,1 anos, já em 2011 chegava a 79,8.

Além desses indicadores, outros direitos foram conquistados: foi abolida a censura, não há mais presos políticos e, até 1974, as mulheres não podiam viajar sem autorização do pai ou do marido. Atualmente, é claro, podem. Marcas do movimento, no entanto, permanecem. Até a revisão constitucional de 1982, o poder civil era tutelado pelo Movimento das Forças Armadas e, ainda hoje, o preâmbulo da Constituição portuguesa afirma que as mesmas Forças Armadas têm como objetivo “abrir caminho para uma sociedade socialista”.

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