quarta-feira, 5 de março de 2014

Miriam Leitão: A vida como ela é

O barulho não era normal. Quando o motorista pisava no freio, estalava um som ensurdecedor avisando que algo estava errado com o ônibus que, na terça-feira da semana passada, fazia a linha 173 da Real Auto Ônibus, que liga a rodoviária do Rio ao Leblon. Eram oito da noite e aquilo estava assim desde as 15 horas, quando a equipe de motorista e cobradora assumiu. Acabaria às 23 horas.

A campainha estava com defeito. O passageiro puxava e o motorista nada ouvia. O passageiro se irritava e o motorista, enraivecido com aquele barulho, respondia com maus modos. Um passageiro que cochilava acordava a cada freada. “Que absurdo” era o que mais se ouvia. Depois, passageiros, cobradora, motorista se conformavam até o próximo estouro. O calor piorava tudo.

Aquele veículo não era diferente dos dois ônibus e um trem que Marina Souza, 40 anos, pega todo dia para ir trabalhar na Zona Sul do Rio. São três conduções para ir e três para voltar. Seis ao todo. Entra no primeiro às cinco horas em Duque de Caxias e chega quatro horas depois.

— O trem é lotado, horrível. E muito calor. Só dá para sentar se pegar no ponto final e a estação estiver vazia. Este ano, estava em um que perdeu o freio e foi batendo até parar. Os passageiros tiveram que descer e ir andando na linha do trem até Bonsucesso. Em outra vez, as portas ficaram fechadas e a luz apagou. Nos ônibus é péssimo também.

O calor tórrido desse verão e as muitas obras no Rio tornaram tudo pior. Está assim no Brasil inteiro. Basta entrar em um transporte público para colher depoimentos de motoristas estressados, cobradores cansados e passageiros irados.

A mobilidade urbana chegou a um nível de emergência que a imprensa fala obsessivamente do tema, nas redações inventam-se novas ferramentas para acudir os desavisados a se proteger do pior, o espaço para transporte só faz crescer nos telejornais e rádios.

Na semana passada, a prefeitura do Rio comemorou o decreto do prefeito estabelecendo que, de agora em diante, todo novo ônibus que se somar à frota terá que ter ar refrigerado. Hoje, só 18% dos ônibus são equipados com ar. Numa cidade calorenta como o Rio não é luxo, é questão de saúde. Se os donos de táxi, até os que têm um único veículo, fizeram o investimento de ter ar condicionado, por que não as concessionárias de transporte público?

A prefeitura pede que se espere porque logo, logo o problema estará resolvido. Sabe quando? Depois de tudo: em dezembro de 2016, 100% dos ônibus terão que ter ar condicionado. Curiosa data. Após a Copa, as Olimpíadas e ao fim do mandato do atual prefeito.

Por algumas das obras no Rio se espera há muito tempo, como a revitalização do Porto ou de áreas do Centro velho. Várias cidades fizeram isso: recuperaram áreas portuárias, fecharam ruas para pedestres ou transporte público. A tendência é essa em Nova York, Londres, São Francisco.

A nenhuma delas ocorreu fazer a transição sem começar do básico: primeiro, melhorar o transporte público e ter uma estratégia de informação sobre mudança de itinerários. Sem opção, o passageiro do carro particular vai disputar espaço nos metrôs e ônibus lotados.

Virou calamidade pública, caso que afeta a saúde das pessoas, reduz a produtividade e piora a qualidade de vida. Ao fim daquele dia na linha 173, em que o barulho explodia a cada pisada no freio do ônibus, como deveria estar a cabeça da cobradora e do motorista?

São inúmeras as histórias do absurdo diariamente contadas pelos jornais. Uma coisa já se sabe. Acabou o carnaval e hoje será tudo igual. E amanhã também. O transporte não melhora tão cedo no Brasil.

Fonte: O Globo

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