segunda-feira, 24 de março de 2014

50 anos do Golpe: mais resistência cultural

Contra ditadura, campo cultural dividiu-se entre engajamento político e renovação estética, até irem todos para a TV ou para o poder

Marcos Augusto Gonçalves – Folha de S. Paulo

Em dezembro de 1964, oito meses depois da queda do presidente João Goulart, estreou no Rio de Janeiro o musical "Opinião".

Dirigido por Augusto Boal, o espetáculo era assinado por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. Levava ao palco Zé Keti, João do Vale e Nara Leão para protestar contra a ditadura que se instalava.

O "Opinião" era um típico produto da esquerda cultural da época, que orbitava em torno do Partido Comunista e, antes de 1964, animara-se com a perspectiva de consolidação de um regime "nacional-popular" no país. Combatia o imperialismo norte-americano e valorizava o que seria a "autêntica" cultura popular brasileira.

Nos anos que antecederam o golpe, artistas dessa vertente reuniram-se no Centro Popular de Cultura, ligado à UNE (União Nacional dos Estudantes), para investir num tipo de produção politizada e didática, voltada para a "conscientização" da sociedade, em especial das classes trabalhadoras.

Derrotada pelo golpe, a esquerda cultural ritualizava no espetáculo a "resistência" ao militar e encenava --ao reunir dois compositores de origem popular e uma cantora da zona sul carioca-- uma sugestiva aliança entre o artista de classe média e o "povo".

Este, entretanto, não compareceu. O teatro, situado no então moderno shopping center da rua Siqueira Campos, em Copacabana, recebia um público esclarecido --e já convertido-- de intelectuais, artistas e estudantes. O mesmo perfil de classe média radicalizada que, pouco depois, apareceria nos festivais de canção popular e na famosa "Passeata dos Cem Mil", em 1968.

A relativa hegemonia do projeto "nacional-popular" não tardaria, porém, a ser problematizada por um novo "movimento", que ganharia o nome de tropicalismo. As canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a instalação "Tropicália", de Hélio Oiticica, o filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, e a montagem de "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina, representavam a emergência de um outro modelo de sensibilidade.

De maneira alegórica, estridente, anárquica, essas obras captavam as mudanças em curso no país: a crise do populismo, a impotência do intelectual militante, o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e os disparates de uma sociedade que se debatia entre o arcaico e o moderno.

No final de 1968, o regime militar editou o Ato Institucional nº 5 e inaugurou um período sombrio de repressão e perseguições.

Em tempos de "milagre econômico", o país entrou na era das comunicações por satélite e ganhou uma rede de TV hegemônica, a Globo, que unia os lares de norte a sul.

Foram os anos do "sufoco" e do "vazio", da contracultura, da literatura alegórica, da "poesia marginal".

Aos poucos, com as perspectivas da abertura "lenta, gradativa e segura" anunciada por Geisel, novas estratégias foram esboçadas, tanto do lado da ditadura quanto dos produtores culturais.

Em que pese o braço repressivo e o anticomunismo atávico dos militares, suas políticas proativas encontravam pontos de afinidade com a esquerda --em especial na defesa do nacionalismo e do Estado como patrocinador.

O surgimento de agências como a Embrafilme e a Funarte selou um novo tipo de relação --problemática, mas bastante efetiva-- entre o regime e a cultura. Paralelamente, a expansão do mercado e do circuito comercial --TV, indústria fonográfica, "teatrão", editoras etc-- abriu novos espaços para artistas e intelectuais.

Nesse novo cenário, muitos dos artífices do teatro realista engajado dos anos 1950 e 1960 migraram para a teledramaturgia da Globo, que ajudaram a formatar.
À sombra do Estado ou em busca do mercado, alguns deles foram acusados, pelos mais radicais, de "adesão" e "cooptação".

Em linhas gerais, consagrou-se nessa época uma espécie de "nacional-popular" genérico --casamento de "Dona Flor" com o "O Bem Amado"-- no qual a potência política se diluiu em fórmulas digeríveis pelo grande público e pelo "sistema".

Não por acaso, quando o presidente José Sarney lançou a Nova República, alguns dos expoentes da antiga esquerda cultural foram convocados para a formulação das políticas culturais. Na realidade, mesmo que não oficialmente, eles já estavam, de certa forma, no poder.

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