quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

José Nêumanne*: Da banca de peixes ao mercado de escravos

Em seu discurso no Fórum Econômico de Davos Dilma Rousseff tentou, ao que tudo indica, erigir um marco de referência para sua campanha. Como o fora a Carta aos Brasileiros, na qual o PT abandonou seu discurso avesso ao sistema financeiro internacional para facilitar o acesso de Lula à rampa do Planalto afastando a desconfiança dos investidores. E da Suíça Sua Excelência embarcou para Cuba para agradecer a Raúl Castro os médicos exportados para o Brasil e assim conquistar votos para candidatos oficiais combatendo as falhas da saúde pública no interior.

Há 12 anos, inspirado pela visão pragmática do ex-prefeito de Ribeirão Preto Antônio Palocci, que passou a coordenar o programa de governo do candidato petista na campanha presidencial após a morte do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel, Lula deu uma guinada de 180 graus na retórica econômica do PT. Com isso, acalmou o mercado inquieto e ganhou a eleição. Hábil, intuitivo e esperto, o ex-dirigente sindical apoiou seu compromisso nos pilares da austeridade monetária, do equilíbrio fiscal e da flutuação cambial ao nomear o banqueiro tucano Henrique Meirelles para a presidência do Banco Central.

E não ficou nisso: solidamente ancorado em seu proverbial bom senso, o antecessor, padrinho e fiador da atual presidente nunca estimulou nem permitiu que nenhum espírito santo da sua orelha esquerda desautorizasse a política, na prática, autônoma, da autoridade monetária nacional. Foi isso que amainou a procela que parecia inevitável caso prevalecessem os impulsos desenvolvimentistas e os flertes populistas com seus melodiosos, mas também venenosos, cantos de sereia. Nem mesmo a queda de Palocci no epicentro de um furacão de escândalos de corrupção e sua substituição pelo inexpressivo, e às vezes até caricato, Guido Mantega alteraram a rota singrada pela nau da economia, que correria o risco de ficar à deriva. E assim o País continuou prosperando e os eleitores garantiram seus dois mandatos e o triunfo de Dilma.

Já a sucessora de padim Lula de Caetés é mandona, voluntariosa e pouco afeita ao exercício da esperteza política. Embora Lula tenha sido mantido no alto posto de eminência parda, a gestão de rotina da política econômica, sob a insignificância de Mantega e a absoluta falta de brilho e de estilo próprio de Alexandre Tombini, um burocrata incapaz de suceder a Meireles à altura, independe da sensatez do profeta do ABC. Ao contrário, limita-se tão somente aos espasmos tirânicos de vontade da chefe geral, economista de formação acadêmica basal, mas sempre disposta a deitar regra em função do diploma. A Carta foi feita para a campanha e entrou na História. A peça de Dilma é mera fantasia de palanque.

No reino encantado de dona Dilma, "a inflação permanece sob controle. Nos últimos anos, perseguimos o centro da meta e trabalhamos para lograr esse objetivo". Trata-se de um logro de fazer o Dr. Pangloss corar de pudor. Pois pelo quarto ano consecutivo a inflação fechou 2013 acima do centro da meta, embora abaixo do teto preestabelecido de 6,5%. "Nosso sucesso estará associado à parceria com os investidores do Brasil e de todo o mundo" - é o doce sonho da chefe do governo. Com 13 procedimentos exigidos e 107,5 dias de prazo para abrir uma empresa, o Brasil está no 116.º lugar entre 189 nações no ranking "Facilidade para Fazer Negócios" do Banco Mundial. Quase um terço de executivos do mundo ouvidos em levantamento da KPMG apontou a complexidade tributária como maior obstáculo para investir no País.

Justiça seja feita, a presidente teve um momento de modéstia realista ao registrar a necessidade de investir muito mais em infraestrutura, lembrando que apoia as parcerias com o setor privado. No entanto, protecionismo, barreiras governamentais, questões políticas e incertezas na regulação põem o Brasil em 71.º lugar entre 148 nações, segundo o Fórum.

Após haver afagado na banca de peixes de Davos bolsos dos quais deverão sair doações para a campanha de sua reeleição, à qual é favorita, menos por competência própria do que por incompetência da oposição, Dilma foi a Cuba. Lá inaugurou a primeira etapa da construção do porto de Mariel, bancado por nós e para o qual doou mais US$ 290 milhões de mão beijada. Então, se não pôde fugir da obviedade de que é preciso investir mais para melhorar nossas condições rodoviárias, portuárias, aeroportuárias e de outros setores necessários à circulação de mercadorias, financiar um porto no qual nunca será embarcada uma saca de soja nacional é uma contradição. Na ocasião, atacou o embargo dos Estados Unidos a Cuba, uma decisão anacrônica e nada inteligente dos gringos, que só serve para reforçar a desculpa furada de que a situação deplorável da economia da ilha caribenha se deve à intransigência ianque. Sua posição é correta, mas óbvia e dispensável. Não parece lógico que os americanos corrijam tal erro só para lhe agradar. E o Brasil até tem cacife para sustentar Cuba, como antes o fizeram a União Soviética e a Venezuela. Mas para quê?

O aspecto mais surreal de sua visita ao canavial dos irmãos Castro, contudo, foi ter levado na comitiva o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, candidato petista ao governo paulista, e seu sucessor, Arthur Chioro, para os três agradecerem em coro o envio de paramédicos cubanos para preencher vagas do Mais Médicos nos grotões pátrios. Ora, esculápios são o maior produto de exportação da miserável Cuba e o Brasil paga o equivalente a R$ 10 mil por mês diretamente aos tiranetes locais por profissional importado, ficando para cada um destes um mísero troco. Trata-se de uma inversão na prática da mendicância: é a primeira vez na História que quem dá a esmola agradece ao mendigo. Ao anunciar mais 2 mil contratados em tais condições, a vendedora de peixe na Suíça comporta-se como receptadora de escravos no Caribe 125 anos após a Abolição.

*José Nêumanne é jornalista e escritor.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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