sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Os anjos e o intérprete no funeral - Fernando Gabeira

O papa Francisco foi considerado a personalidade do ano pela revista Time. Mas quem fez uma aparição inesquecível foi o intérprete no funeral de Nelson Mandela. Seu nome é Thamsanga Dyantyi, tem 43 anos e os olhos bem abertos, quase assustados. Vestia um temo escuro e usava um enorme colar azul, sua credencial para traduzir os poderosos para os surdos do mundo.

Não sei se o intérprete parou de fazer sentido em certo momento ou se jamais se preocupou com isso. Seus gestos pareciam transmitir uma espécie de tudo bem, continuemos juntos. Alguém conseguiu traduzir isso de sua linguagem gestual. Mas também traduziu como socorro, cigarro, enfim, uma série de palavras que nada tinham que ver com o contexto.

Acusado de assassinato e estupro, Thamsanga impressionou o mundo porque se aproximou dos poderosos,furando todos os bloqueios de segurança que fazem e refazem constantemente. Ele não se considera perigoso. Com alguns rudimentos da linguagem gestual achou que poderia encarar a tarefa, que ninguém jamais se daria conta do seu improviso jazzístico, numa cerimônia em que muitos cantavam e alguns líderes mundiais viviam momentos de poses para o Facebook. Denunciado como impostor, Thamsanga declarou-se doente mental e disse que foi assaltado pelos anjos. Ele mesmo não tem a mínima ideia do que traduziu e ficou surpreso com o cerco da imprensa.

No meu trabalho cotidiano tenho encontrado muita gente que recebe entidades do além ou teve contato com seres do outro mundo. Mas em quase todos os casos seres e entidades enviam mensagens compreensíveis. Que tipo de falange atacou Thamsanga no momento em que falavam grandes líderes mundiais? O que queriam dizer com essa tradução? Tudo bem, continuemos juntos?

Se fossem anjos budistas trabalhariam com o koan, uma forma de ensinamento que desafia a compreensão racional, como, por exemplo, ouvir o barulho de palmas de uma só mão. Mas não era isso. Os anjos pareciam se rebelar contra a linguagem política nas cerimônias, melhor cantar e dançar do que ouvir o que os franceses chamam de langue de bois, palavras sem contato com a realidade.

O Brasil terá eleições no ano que vem. Imagino o que aconteceria se a mesma falange baixasse nos intérpretes dos programas eleitorais gratuitos. Nesse caso teríamos, sim, grandes espetáculos. É possível que radicalizem e saiam, literalmente, cobras e lagartos dos punhos das camisas, e nossas telas iriam reproduzir imagens de telas fantásticas da Antiguidade.

O mal do intérprete sul-africano é comum num cotidiano em que a tecnologia avança a passos que não podemos seguir. Muitos se perguntam se ainda estão dizendo coisa com coisa nessa corrida veloz atrás dos novos instrumentos, novas explicações dos cientistas e divulgadores que constituem a Terceira Cultura. Essa expressão foi criada por C. P. Snow, que via duas culturas nitidamente separadas, a científica e a, por assim dizer, literária e humanística. A Terceira Cultura seria uma tentativa de cientistas e divulgadores preencherem a distância entre as duas.

Nesse campo, estamos numa fase de convergência dos discursos, de reencontrar um terreno comum em que não sejamos intérpretes no funeral um para o outro. Mas na política brasileira a performance de um intérprete como Thamsanga não é mais necessária. As pessoas sabem que aquilo não faz sentido, é apenas um amontoado de frases vazias, sem contato com a realidade.

As manifestações de junho já vão longe. Mas em muitos programas partidários foram elogiadas, como se os partidos estivessem envolvidos nelas e não fossem um alvo de sua crítica.

Não mudaram nada em suas estruturas, não se abriram para a sociedade. E agora virão dizendo como Thamsanga: socorro, precisamos continuar juntos.

Desmascarada a impostura de Thamsanga, valeu ao menos como uma lição para os poderosos do momento: não são apenas as versões que contam, existe ainda um sentido de realidade. O que se vê hoje no Brasil é uma falange de interpretes de funeral criando uma versão própria para fatos consolidados, como o julgamento do mensalão.

Os anjos que possuíram Thamsanga apenas desconstruíam o discurso. Os que voam no imenso céu da América do Sul oferecem versões articuladas, chegam na forma de pássaro para Nicolás Maduro, desenham o efígie de Hugo Chávez nas paredes de Caracas, transformam em guerreiros do povo brasileiro quem cometeu crimes contra a democracia.

Chega um momento em que todos descobrem as falhas do intérprete. O que podem dizer os anjos aos dirigentes do Rio num momento em que começam as chuvas de verão? Depois que possuíram Thamsanga, fiquei mais atento aos anjos. Passaram por aqui na tempestade. Frequentaram alguns sites que diziam: manifestantes protestam contra enchentes. Como se estivessem protestando contra um fato natural e seu alvo simbólico fosse São Pedro. Reapareceram no discurso político: as chuvas são um problema de décadas; nosso bloco está no poder há apenas pouco mais de uma década, logo, esperem mais algumas décadas para julgar nosso trabalho.

Tenho poucas esperanças no processo eleitoral. Thamsangas de todos os níveis vão ocupar as telas. Muita gente vai perceber que não fazem sentido e recusar o processo, por meio dos votos em branco e nulos. Isso não impede que haja vencedores e que continuem inspirados pelos anjos. Uma versão histórica transmitida pelos anjos que os possuíram. Los Angeles defensores dos pobres e dos oprimidos.

Como muitos ainda se impressionam com os gestos do intérprete, sua faixa azul e os olhos assustados, é possível que sua mensagem seja aceita pela maioria dos eleitores. É a mensagem de ano-novo de Thomsonga: socorro, precisamos continuar juntos. Para a qual também existe uma outra versão respeitável: precisamos continuar juntos, socorro!

Jornalista

Fonte: O Estado de S. Paulo

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