domingo, 29 de dezembro de 2013

A pauta escamoteada - José de Souza Martins

Educação e saúde entraram mais nas respostas do governo às ruas do que no próprio protesto

Apesar das suposições, educação e saúde não tiveram forte visibilidade no elenco das demandas das manifestações de rua. Os protestos elegeram a elevação das tarifas de ônibus, a corrupção política evidenciada, sobretudo, no caso do mensalão, as despesas astronômicas com a infraestrutura de eventos grandiosos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 e a má qualidade dos serviços públicos. A educação e a saúde públicas entraram nesse último item, aparecendo em Brasília, mas não aparecendo no Rio.

Como é compreensível nos chamados movimentos coletivos, o comportamento de multidão tende a ser o das demandas difusas, surgidas no acaso dos reelamos suscitados na ocasião, um assunto puxando outro. Mas tende a ser também o momento da síntese expressiva dos tópicos de uma agenda de reclamações que todos carre; gam na memória à espera da oportunidade para torná-las visíveis e audíveis. Demandas sociais não explodem de repente.

A importância política dessas manifestações coletivas está no fato de que deram voz e visibilidade à maioria silenciosa, diferente do que ocorre nos chamados movimentos sociais. A quebra do silêncio se torna nessa hora um fato político, sobretudo porque contraria o coro dos cúmplices e bajuladores de voz programada para o amém que alegra, os poderosos. Durante o regime militar um novo sujeito político emergiu no cenário nacional, com demandas tópicas que incluíam reformas sociais.

No decênio do petismo outro sujeito político começou a germinar em silêncio, claramente antipartidário, o que bem indica a natureza da crise que protagoniza. Expressa o descrédito da política. Sendo os participantes desse novo movimento majoritariamente jovens, com acesso à internet e às redes sociais, é bastante evidente que se trate de manifestações da classe média que já não reclama educação, mas se motiva na educação para o protesto. A educação gerou os manifestantes de agora, em vários momentos de sua ação indicando o protagonismo do manifestante contra o do militante.

Nas manifestações coletivas deste ano, vimos a tensão se deslocando do centro das cidades para a periferia e retomando ao centro, com os temas do protesto se modificando, acrescentados. Como se o deslocamento fosse uma caça de temas para enriquecer a indignação dos manifestantes e dar durabilidade ao que tende naturalmente a esgotar-se. Mas indício, também, de que um invisível estoque de descontentamentos permanece à espera de novas manifestações. Não emergiram antes porque os mecanismos de controle social o impediram. Alguns emergiram agora porque esses mecanismos perderam a eficácia.

Educação e saúde entraram mais no rol das respostas do governo ao protesto do que no próprio protesto. O programa Mais Médicos acabou funcionando como tentativa de dar a volta por cima das inquietações de rua, para aplacar uma demanda permanente por saúde pública de qualidade, uma verdadeira medicina social, como há em outros países. É uma tentativa do governo de administrar o conflito, cujo acerto dependerá de tempo para que a clientela desse serviço possa experimentá-lo, testá-lo e avaliá-lo. Como técnica, esvazia esse item do protesto e adia o seu desfecho. Resta saber por quanto tempo. Médico sem satisfatória infraestrutura de saúde pública é pouco mais que um curandeiro.

Na área da educação a questão é mais complicada. Há uma crescente demanda de ensino superior, mas nenhuma explícita demanda de melhora no ensino elementar e médio. É aí que se situa o cerne da crise da educação brasileira. As avaliações anuais das escolas não permitem otimismo. Por outro lado, no contraponto do crescimento numérico das. escolas superiores, o próprio ministro da Educação vetou o vestibular em mais de 200 cursos superiores, dado que aquém da qualidade que superiores os tomaria. A falta de um verdadeiro projeto nacional de educação se revela nessas incongruências. Mas se revela, também, num programa como o Ciência sem Fronteiras, que envia alunos de graduação ao exterior para uma temporada, sem clareza quanto ao que isso acrescenta a sua formação.

Na sequência das manifestações, houve finalmente a invasão da Reitoria da Universidade de São Paulo, com a ocupação e depredação de cinco andares do prédio e prejuízos avaliados em R$ 2,4 milhões. O tema foi a questão do poder na universidade, não a eventual questão do ensino e da educação. A melhor universidade brasileira foi objeto de uma manifestação que, rigorosamente falando, nada teve a ver com demanda por educação ou melhora da educação superior. Foi um desdobramento residual e antagônico das manifestações de rua e tentativa de implantar demanda ideológica e partidária no interior de um movimento justamente contrário a isso. Os manifestantes, porém, que falaram pela maioria, já haviam deixado às ruas e se calaram diante do vandalismo antieducacional e antipolítico dos militantes da minoria. Expuseram assim seus limites, insuficiências e contradições.

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de Asociologia como aventura (Contexto)

Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás

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