terça-feira, 1 de outubro de 2013

As flores do mal - Tereza Cruvinel

A orgia partidária de agora teria sido evitada com a aprovação do projeto que impedia a portabilidade dos mandatos e do tempo de tevê, demonizado como arma contra Marina Silva

Daqui até sábado, continuará aberta a feira livre de filiações partidárias para os que serão candidatos a cargos eletivos em 2014. O troca-troca ofende o eleitor e avilta o sistema político, aumentando seu descrédito e dificultando, para os governos, a formação de maiorias. A cada dois anos, a novela e os protestos se repetem. É tempo de buscar respostas menos óbvias, apontar algumas responsabilidades e tentar soluções efetivas. Sem partidos nítidos e representativos, a política vira negócio, o eleitor se frustra, passa a negá-la, realimentando a desqualificação da representação. Um dia a casa cai.

Alguns preferem a explicação ligeira de que tivemos uma boa tradição partidária. Meia verdade, ensina a história. Na República Nova, pós-30, sepultados os partidos republicanos regionais, surgiram os nacionais mais vertebrados, como PSD, UDN, PTB. O golpe de 1964 liquidou-os, instituindo o bipartidarismo. O MDB podia ser a oposição consentida, mas raramente alguém deixava seus quadros para se filiar à Arena, ou vice-versa. A reforma de 1979 atendeu ao avanço da abertura, com a anistia, e também aos desígnios do general Golbery, de dividir a oposição que crescia e se fortalecia. Arena virou PDS, MDB se tornou PMDB e a eles se juntaram, entre outros, PDT, PTB, PT, e os proscritos PCB (que virou PPS) e PCdoB. A transição rachou o PDS e surgiu o PFL, hoje DEM. Veio a Constituinte e, garantida a ampla liberdade de organização partidária, o sistema tornou-se hiperpartidário, chegando agora a 32 siglas. Serão 33 se o TSE, depois de autorizar o PROS e o Solidariedade, reconhecer a Rede, de Marina Silva, que, diferentemente dos outros, nasceria de uma mobilização.

O mal maior
Por que partidos demais fazem mal? Primeiramente, porque os votos para a Câmara se dividem entre dezenas de siglas e nenhum governo terá maioria ou se aproximará dela. Partidos europeus também precisam fazer coalizões para governar, mas com um ou dois e basta. Aqui, não. As vitórias de FH nunca garantiram ao PSDB mais do que 20% da Câmara. As de Lula e Dilma nunca deram ao PT mais que 18% das cadeiras. Isso leva à formação de uma "base" ampla, heterogênea, instável, pois movida a cargos, a favores e ajuda para as eleições. Essa é a verdadeira origem do mensalão.

Partidos demais são nocivos também porque confundem o eleitor, não permitindo que ele vote porque gosta desta ou daquela proposta. Encarecem as eleições, pois se cada sigla faz uma campanha, e, em cada uma delas, cada candidato a deputado faz a sua, divulgando o próprio nome e não as bandeiras da legenda, serão milhares de campanhas, todas caras. Uma vez no Congresso, cada qual vota como quer. O eleitor perde o respeito e depois faz como em junho, quando todas as siglas foram vetadas das manifestações. Mas, sem partidos, não se inventou ainda outro modo de funcionamento da democracia representativa.

Se é fácil invocar a falta de tradição, mais simples ainda é culpar o sujeito, atribuir a volubilidade à falta de caráter dos que mercadejam mandatos e filiações. E isso vale para os que criam partidos para "vender" como para os que "alugam" mandatos para viabilizar legendas. As flores do mal vicejam porque o terreno é fértil.

Alguns culpados
Por justiça, recordo o ex-senador e ex-vice-presidente Marco Maciel como um dos primeiros políticos realmente preocupados com os rumos do nosso sistema partidário, no início dos anos 1990. Foi ele o primeiro a propor a cláusula de barreira, para evitar as siglas aventureiras com a exigência de votação nacional mínima, em pelo menos certo número de estados. Na fórmula finalmente aprovada, 5% dos votos do país em nove estados. O Congresso fez sua parte, mas quem foi que derrubou a cláusula? O Supremo, cujo presidente, Joaquim Barbosa, recentemente criticou duramente o número de partidos e a falta de consistência deles.

O Judiciário colaborou também ao anular o outro remédio, a perda do cargo pelo migrante. Embora tenha reconhecido que o mandato é do partido, junto ao TSE a perda só ocorre se a sigla desfalcada reclamar. Agora mesmo, o PSB prometeu não pedir a punição dos que estão saindo porque, à candidatura própria do presidente da legenda e governador de Pernambuco, Eduardo Campos, preferem apoiar a reeleição da presidente Dilma Rousseff. O PMDB, louve-se, anunciou que cobrará olho por olho.

Mas pecou mais ainda o Judiciário, em 2012, quando julgou o caso do PSD e decidiu que não cabe punição se a mudança é para uma sigla nova, que ficará com o mandato, a fração do fundo partidário e o tempo de tevê dos deputados que receber, credenciando-se a negociar com os grandes partidos. Tal decisão estimulou a fabricação de novos partidos, como estes dois que acabam de surgir.

Há poucos meses, erraram todos, inclusive os analistas políticos, da imprensa ou da academia, que se insurgiram contra o projeto que vedava a portabilidade de mandatos e tempo de tevê em caso de migração. A grita geral foi de que, com ele, o PT e PMDB queriam evitar a candidatura de Marina Silva, inviabilizando seu novo partido. O ministro Gilmar Mendes concedeu liminar sustando a tramitação do projeto, numa inédita interferência no processo legislativo. A liminar caiu, mas era tarde. O senador Romero Jucá (PMDB-RR) garante que o projeto será votado depois que passar o prazo de refiliação com vistas a 2014. Antes tarde do que nunca, mas quanto tempo teremos perdido? Passado o pleito, devemos começar 2015 pensando nestas coisas. A eleição ainda estará longe.

Fonte: Correio Braziliense

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