segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Transformador ou negociador? - Renato Janine Ribeiro

Na revista "The Atlantic" do mês de junho, o cientista político Joseph Nye pergunta quais presidentes dos Estados Unidos podem ser chamados de "transformational", quais de "transactional". Não é fácil nenhuma das traduções. No uso que faz Nye, a primeira palavra não quer dizer "transformador", mas sim quem pretende transformar - e pode fracassar no intento. A segunda palavra designa quem se dispõe a negociar, a transacionar - e, de novo para Nye, geralmente com êxito. Vale a pena tentar o exercício para nossos governantes.

E, já aí, um problema. Para qualquer estudioso americano, os 44 presidentes da República que eles tiveram, desde George Washington, sem um único golpe de Estado, formam um "corpus" de fácil acesso e exame. Podem compará-los entre si. E nós? Se pensarmos nos governantes do Brasil independente, temos dois imperadores, duas regências trinas, dois regentes individuais, isso na monarquia; no período republicano, duas juntas militares (em 1930 e 1969), mais um número confuso de presidentes. A "Folha de S. Paulo", na última eleição, sugeriu o total de 40, incluindo as juntas; na Wikipédia, temos 36. Pode parecer detalhe, mas mostra que lidamos com nossa história de maneira bem diferente da americana.

Eu acrescentaria uma questão prévia espinhosa: a legitimidade. Nossos primeiros presidentes - até Washington Luís - foram eleitos em meio a tanta fraude eleitoral, geralmente sem concorrentes competitivos, que falar em democracia e mesmo em eleição, a propósito deles, é duvidoso. Seguiram-se os 15 anos contínuos de Getúlio Vargas, terminando em 1945, e mais duas décadas de ditadura, entre 1964 e 1985. A voz do povo foi consultada, para a escolha presidencial, apenas nos quatro pleitos que houve entre 1945 e 1960, e de novo a partir de 1989. Se somarmos nossos dois períodos democráticos, ambos se sucedendo a ditaduras, dá menos de meio século - e oito presidentes eleitos pelo voto direto. Difícil comparar com os Estados Unidos.

Talvez por isso, não fazem parte de nossa memória política os presidentes ou governantes mais antigos. Quem pode discorrer a favor de Artur Bernardes? Ou contra ele? Que balanços fazemos dos nossos imperadores, que possam ir além da audácia quase irresponsável do primeiro e da moderação quase conformista do segundo?

Mas, isso posto, podemos tentar classificar os presidentes de nosso universo mental - que começa em 1930, mas exclui alguns que esquecemos, como os ditadores militares e a junta idem. No caso dos Estados Unidos, Joseph Nye argumenta que os presidentes que quiseram transformar o mundo tiveram menor êxito do que os que negociaram. Entre os primeiros, elenca Woodrow Wilson e o segundo Bush; ilustra os segundos com Eisenhower e o primeiro Bush. Discordo dele. Seria mais correto dizer que Lyndon Johnson fracassou como "transformational" no Vietnã e acertou magistralmente, como transformador e negociador, quando forçou o reconhecimento dos direitos civis dos negros. Não há presidentes de tal ou qual natureza; há comportamentos até conflitantes que podem coexistir na mesma pessoa, com êxito maior ou menor.

E aqui? Dos oito presidentes eleitos na democracia, foram altamente transformadores Getúlio, Juscelino, Fernando Henrique e Lula. Tiveram êxito no que empreenderam: a inclusão social, a industrialização e a interiorização do desenvolvimento, a vitória sobre a inflação e o destravamento da economia e, de novo, a inclusão social. Chama a atenção: metade dos presidentes da democracia transformou com êxito. Muito mais que nos Estados Unidos... Um quinto, Collor, tentou transformar, mas fracassou; mesmo assim, parte do que tentou, FHC implantou. Dos eleitos, só Dutra e Jânio - e, por ora, Dilma - ficam em segundo plano. Em compensação, Sarney merece destaque. Não tivesse cometido a tolice de voltar à presidência do Senado, seus êxitos seriam celebrados. Foi provavelmente nosso maior transacional. Seu mandato, justamente porque pálido, teve o grande mérito de acalmar o país. Mesmo quando a inflação beirava os 100% ao mês, em seu governo, o Brasil só teve nervosismo econômico. Os demais nervosismos (vem um ato institucional? vem um golpe?) saíram de cena.

Sarney e Itamar Franco foram os grandes negociadores de nossa história recente. Terá sido por isso que esses dois vices, guindados pelo acaso à Presidência, foram tão depreciados? Itamar se viu reabilitado só após a morte, quando os tucanos reconheceram que o Plano Real foi decisão política dele. Não sabemos o que se dirá de Sarney.

Formulo aqui duas hipóteses: primeira, queremos transformadores; não gostamos muito de negociadores ou consolidadores, e a palavra "transação" pega mal em política. Segundo, nossa taxa de sucesso para os modificadores, em período democrático, é elevada. Bem mais do que nos Estados Unidos, que estão longe de ter metade de seus presidentes com o perfil de transformadores.

Será, no fim das coisas, porque sempre vivemos acreditando que o Brasil está na UTI? E não está. Não paira ameaça de ditadura, nem de inflação significativa ou de recessão preocupante, e a inclusão social entrou de maneira irreversível na agenda política. Nunca o Brasil esteve tão bem quanto hoje, em decorrência de bons 21 anos de amadurecimento que começaram com o impeachment do presidente Collor e foram conduzidos por nossos dois melhores partidos - talvez, os melhores de nossa história. Mas ainda assim acreditamos - inclusive eu - que precisamos de grandes transformações, e nos sentimos decepcionados quando elas não vêm...

Professor da USP

Fonte: Valor Econômico

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