domingo, 7 de julho de 2013

J. S. Bach - Ivan Alves Filho

A pequena cidade de Eisenach teve um papel singular no desenvolvimento da civilização ocidental moderna. Nas suas cercanias, mais exatamente no Castelo de Wartburg, Martin Lutero traduziu a Bíblia Sagrada para a língua alemã, tornando praticamente irreversível a Reforma protestante. E os partidários de Marx e Engels fundaram ali, em 1869, o Partido Social Democrata da Alemanha. Mais: na acanhada cidadezinha cercada de encantadoras florestas, nasceu Johann Sebastian Bach, para muitos o maior nome da música em todos os tempos. Ninguém ou nada vem ao mundo em Eisenach impunemente, pelo visto.

Bach, um fervoroso protestante, justamente, era originário de uma família de músicos. Religião e Arte faziam parte do seu corpo, como sangue e ossos. Seu trisavô, Veit Bach, teria sido obrigado a deixar a Hungria por professar a fé luterana. Daí a família ter se estabelecido na Silésia, na parte oriental da Alemanha. Seu bisavô já era músico profissional e Bach aprenderia violino com o próprio pai. Órfão muito cedo, prosseguiria seus estudos com o irmão mais velho. Com apenas 14 anos de idade, em 1699, já era contratado como violinista e organista pela corte de Weimar,que começava a se projetar como uma espécie de Atenas da Alemanha - homens como Goethe e Schiller e, mais tarde, Nietzsche fincariam os pés por lá.
Sebastian Bach teria composto na passagem do século XVII para o seguinte as suas primeiras cantatas. E, sobretudo, o músico já impressionava pelo seu virtuosismo. A darmos crédito a um depoimento, ao tocar órgão, Bach "corria sobre os pedais como se seus pés tivessem asas, fazendo o instrumento ressoar de tal maneira que quase se diria ouvir uma tempestade".

Sua saída de Weimar fora um tanto quanto tumultuada. O Duque de Weimar chegou a mandar prendê-lo, porque Bach insistia em deixar a cidade em busca de melhores condições de trabalho. Obstinado, o músico não cedeu às pressões do Duque e ainda concebeu, na prisão, o Pequeno livro de órgão. Conforme escreveu seu biógrafo Karl Geiringer, "o desafio determinado de Sebastian Bach aos desejos de seu patrono constitui um importante marco, embora ainda isolado, na luta dos artistas pela liberdade social". Resultado: o músico foi solto. Que jeito?

De Weimar - onde permanecera por nove anos, mas não lograra tornar-se mestre-de-capela - o jovem músico ganha Cötten, a convite do príncipe Leopoldo. Bach passa a se dedicar, então, à música instrumental, deixando praticamente de lado a música sacra. É a fase das Suítes francesas para cravo e dos magníficos Concertos de Brandenburgo. O espaço profissional dos músicos se alternava então entre a igreja e a nobreza. Para a sorte de Bach, o príncipe "não só amava como conhecia música", executando vários instrumentos de corda, além de possuir uma bela voz de barítono.

Após muito perambular pela Alemanha, Bach vai para Leipzig, onde residiria por quase três décadas. Mas nem sempre encontrou ali boas condições para atuar. A organização musical de Leipzig dependia do chamado Conselho da Cidade, que chegou a emitir um parecer, em 1730, no qual se podia ler que Sebastian Bach "mostrava pouca inclinação para trabalhar".

Toda vez que ouço algo de Johann Sebastian Bach - para além do prazer incontido que isto provoca em mim -, firmo a convicção de que sua música - de tão tensa, retorcida, obcecada até - não cabe completamente nos limites das notas musicais. Na verdade, Bach nos remete a um som que extrapola ou atropela tudo que conhecemos em matéria de escala ou métrica. Talvez resida aí a principal característica do estilo barroco - o estilo por excelência de Sebastian Bach -, o qual ocupa todos os espaços possíveis da superfície musical. Seja como for, acontece com a arte de Bach aquilo que também ocorre com certas representações pictóricas - que, de tão plenas, deixam a sensação de que dispensam a camisa de força das molduras e telas, propondo um espaço cênico infinito. Podemos dar a isso o nome de liberdade artística - ou criação sem limites.

Cantatas - e penso em Magnificat e na Cantata dos camponeses. Motetos - e me recordo de Jesus, minha alegria. Obras corais - e não tenho como deixar de lembrar a Paixão segundo são Mateus. Fugas - e não há como deixar de rememorar a impressionante A arte da fuga. Tocatas - e não se pode esquecer o comentário de Mendelsohn diante da Tocata e fuga em fá maior, "que soava como se fizesse a igreja desmoronar". Além de missas, sonatas, variações, suítes e incontáveis prelúdios. Pois Johann Sebastian Bach abordou praticamente todos os gêneros musicais de seu tempo. No fundo, o compositor agia sob forma de música, independentemente do gênero que abraçava.

Contudo, acredito que o Bach concertista tenha sido o que deixou marcas mais profundas na história da música ocidental. Um exemplo apenas (ou melhor: seis...) corrobora o que digo: os monumentais Concertos de Brandenburgo. Os Concertos têm por base os instrumentos de sopro. Orquestrados, os Concertos são muitas vezes tensos e conflitantes entre eles. Sua audição gera nas pessoas a nítida impressão de que as notas musicais ecoam livres como pássaros no céu. Ou que elas murmuram em nossos ouvidos como água pura escorrendo por entre os seixos dos rios. Ouvindo Bach, temos a certeza algo estranha de que um anjo desceu à Terra para nos salvar.

São seis concertos, eu lembrava mais acima - ou um verdadeiro festival de contrapontos e espantosa energia sonora. Ao mesmo tempo erudito e popular. Técnico e emotivo. Alegre e triste. Suave e enérgico. Cândido e explosivo. Alternando período longo e período curto. E - nunca é demais lembrar - contrapontísico ao extremo. Unificando tudo. Sonoridades italianas, alemãs, francesas, inglesas. Bach fazia uma música de um tempo de contrastes, de Reforma e Contra-Reforma, e, por isso, mesmo contraditória, rica. E bela, muito bela. Ultrapassando por isso mesmo seu tempo.

A ousadia da linguagem harmônica, a extraordinária capacidade de criação e, mesmo, a espiritualidade sempre à flor da pele fizeram de Johann Sebastien Bach o maior compositor da história da música ocidental. Em suas principais obras, dos Concertos de Brandebourg à Arte da Fuga, passando por uma quantidade imensa de belíssimas cantatas, oratórios e músicas de câmara, Bach combinava o recurso aos contrapontos no stilo antico com as formas orquestrais mais modernas de sua época, conforme salientou certa vez Helmut Rilling, maestro e organizador de suas obras completas. Contrapontos esses que lembram estranhamente o jazz e seu estilo sincopado. Talvez resida nessa relativa atemporalidade uma boa parte do fascínio que Bach exerce ainda hoje (e cada vez mais) sobre nós.

Sebastian Bach consolidou toda uma cultura musical, sem deixar de ser ainda um inovador. Mas esteve longe de ser considerado, na sua época, um artista de vanguarda (conforme entendemos hoje este termo). Pelo contrário. Era visto até como um compositor algo antiquado. O fato é que nem sempre entendemos, no tempo presente, que o passado possa estar à nossa frente. Ser o nosso futuro. Foi o que o gênio de Sebastian Bach nos provou.

Ivan Alves Filho, historiador e jornailista

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