sábado, 20 de julho de 2013

A filósofa e a máquina de extermínio nazista

Filme de Margareth von Trotta serve para relembrar reflexões de Hannah Arendt sobre o assassinato organizado de judeus

Luis Edmundo de Souza Moraes

O filme “Hannah Arendt”, de Margarethe von Trotta, não é somente uma obra sobre uma personagem excepcional, mas também sobre um aspecto excepcional de sua vida: o encontro de Arendt com Adolf Eichmann no julgamento em Jerusalém e a controvérsia em torno do livro “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. O livro tornou-se muito importante e diversos são os trabalhos de pesquisa sobre o nazismo e sua política de extermínio que até hoje fazem referência a ele, tamanho é o alcance das questões que traz. E isto apesar e por causa dos vários problemas do livro.

Apoiada em material insuficiente e carente de avaliações mais cuidadosas, Arendt nos ofereceu uma apresentação em muitos aspectos superficial, incompleta e incorreta da matéria. Isto se aplica, em especial, à sua avaliação sobre Eichmann como um simples burocrata, à generalização sobre a colaboração e a centralidade dos conselhos judaicos para explicar as dimensões do extermínio, temas caros a seus críticos.

Paralelamente, o próprio uso do termo “banalidade” para qualificar o “mal” que Arendt buscava compreender, foi errônea e desonestamente interpretado como se ela estivesse se referindo à tragédia das vítimas do nazismo como algo banal, nada mais distante daquilo que ela escreveu.

Aspecto central do livro, esta ideia deriva do fato de que Arendt não consegue encaixar Eichmann, um tenente-coronel da SS encarregado das medidas administrativas para a execução da chamada Solução Final, na forma como este evento vinha sendo pensado até então. E aqui abro um parênteses: o extermínio nazista sempre foi visto como excepcional, o que trouxe consigo o problema de sua inteligibilidade.

Desde cedo, o extermínio nazista foi tornado inteligível pelo recurso a “coisas já conhecidas” ou familiares. Dos diversos sentidos dados ao extermínio até os anos 60 que, tornando-o familiar, o tornaram inteligível, dois tem importância para Arendt.


Em primeiro lugar, o crime ganhou sentido por ser pensado como a culminação trágica de séculos de antissemitismo. A Solução Final teria sido excepcional pelas dimensões, mas não uma novidade absoluta. Isto tornou o crime, em alguma medida, familiar.

Paralelamente, a excepcionalidade do crime foi tornada inteligível recorrendo-se à excepcionalidade dos perpetradores. Isto foi uma derivação a contrapelo: já que o produto final é monstruoso, é natural que seus produtores fossem monstros. Com isto, o crime tornava-se inteligível, familiar, visto que é normal que monstros pratiquem crimes monstruosos. Assim, a monstruosidade do crime exigiu que os perpetradores fossem pensados como monstruosos para que o conjunto fizesse sentido.

Arendt já recusara em seu “Origens do totalitarismo” a tese de que o extermínio nazista era a culminação do velho ódio aos judeus. Para ela, o antissemitismo nazista não é a mesma coisa que o antissemitismo antigo. Estabelecer esta conexão significa “escapar à realidade e não entendê-la”, diz em 1964 a Günther Gaus. Em relação à segunda tese, contudo, o julgamento teve papel decisivo. Para espanto de muitos e dela mesma, ela não achou Eichmann monstruoso, mas curiosamente normal. Ele não pareceu a Arendt um antissemita radical, que só teria na vida o propósito de exterminar judeus. Efeito da forma como Eichmann se apresentou publicamente ou não, ela não viu nele motivação profunda, patologia ou uma intenção fanática de assassinar os judeus, mas simplesmente coisas que estão em nosso mundo e não nos fariam crer que levassem a um crime desta qualidade: ambição por subir na carreira e mediocridade. E a preocupação dela era resolver esta equação: a monstruosidade atípica do crime e a normalidade das condições que o produziu.

Respondendo a Samuel Grafton em 1963, Arendt deu a seguinte formulação: “O que eu quero dizer é que o mal não é radical, (...) que não tem profundidade. O mal é um fenômeno superficial (...). Nós resistimos ao mal ao não sermos arrastados pela superfície das coisas, ao pararmos e começarmos a pensar, ou seja, ao alcançarmos uma outra dimensão que não o horizonte da vida cotidiana. Em outras palavras, quanto mais superficial alguém for, mais provável será que ele ceda ao mal.”

E isto se sustenta, ainda que a avaliação de Arendt sobre Eichmann não correspondesse ao próprio personagem. Estudos feitos sobre o extermínio nazista mostraram que, se este foi de fato planejado por pessoas movidas por um projeto de mundo racista e excludente, ele foi executado não somente por eles, mas por um corpo de especialistas e de funcionários que colocaram sua competência científica, técnica e administrativa, valores diletos da civilização ocidental, a serviço de uma complexa máquina de morte. O que se passa em todo o processo que vai da identificação e prisão dos judeus até o extermínio nas câmaras de gás envolveu milhares de pessoas com funções específicas que trabalharam no grande projeto de eliminar pessoas.

Assim, a monstruosidade do extermínio nazista está exatamente no fato dele não ter sido cometido majoritariamente por monstros, mas em grande parte por funcionários modernos e eficientes. Estes incluíam as secretárias que mantinham as fichas dos judeus atualizadas, os policiais que os prendiam, os maquinistas que os transportavam e os químicos que escolheram o gás a ser usado etc. Foi o trabalho destes bons funcionários alemães, franceses, ucranianos, italianos, holandeses e outros que permitiu assassinar tantas pessoas, com o menor custo emocional e material possível e em tão pouco tempo. Eles se igualavam pela ausência de considerações morais sobre suas tarefas cotidianas.

Não se trata para Arendt de pensar que exista um Eichmann em cada um de nós. Na verdade, nosso mundo produz muitos Eichmanns, que, sem que sejam percebidos como tais, são peças decisivas para que uma máquina de morte como esta possa ser colocada para funcionar.

Assim, a excepcionalidade do extermínio nazista está exatamente no fato de que a combinação de diversos componentes que não são excepcionais podem produzir um crime excepcional. E, dizendo isto, o que Hannah Arendt faz é nos convidar a observar a máquina de extermínio nazista para, através dela, pensar sobre o nosso próprio mundo.

Luis Edmundo de Souza Moraes é doutor pelo Centro de Pesquisas sobre o Antissemitismo da Universidade Técnica de Berlim; professor de História Contemporânea do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ

Fonte: Prosa / O Globo

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