sexta-feira, 15 de março de 2013

O debate maniqueísta - Cláudio Gonçalves Couto

Episódios ocorridos no último mês suscitaram intenso debate em nossa imprensa escrita, falada e televisiva, assim como no mundo virtual das redes e blogs. Começam com a vinda da blogueira cubana Yoani Sánchez ao Brasil, passando pela morte do presidente venezuelano, Hugo Chávez, e terminando com a eleição do cardeal argentino, Jorge Mario Bergoglio, ao papado.

Afora a coincidência de termos a agenda pública capturada por temas relacionados a nossos vizinhos da América Latina, o que se destacou nesse debate foi o viés maniqueísta de boa parte dos posicionamentos. Com interlocutores assumindo sinais trocados em cada um dos casos, a percepção de nuances, o sopesamento de aspectos e a capacidade crítica cederam lugar ao simplismo, ao exagero e à convicção cega. A construção fácil de heróis e vilões tornou-se, assim, não apenas produto do sectarismo que animou boa parte dos debatedores; ela também serviu como instrumento para o ataque a adversários políticos e/ou ideológicos, estabelecendo implícita ou explicitamente nexos entre eles e os espantalhos surrados.

Se tal fuga da sensatez ficasse restrita às bobagens que se diz em mesa de botequim, ou, no atual contexto, nos posts e comentários das redes sociais e blogs, até que estaríamos bem. O problema é que parte desse Fla-Flu argumentativo partiu das perguntas, análises e posicionamentos de jornalistas e intelectuais que dispõem não só de audiência ampla, mas formam opiniões. E mais: o sectarismo do debate gera um processo que se retroalimenta, acirrando cada vez mais os posicionamentos, turvando percepções e reduzindo o espaço para que, no futuro, produza-se uma interlocução honesta entre ideias e interesses divergentes.

O maniqueísmo do debate público faz turvar a percepção

No caso de Yoani Sánchez, de um lado se viu sua transformação não só numa heroína da liberdade (algo compreensível para qualquer dissidente que se atrevesse a atacar abertamente um regime autoritário, como Cuba), mas numa referência intelectual e jornalística de primeira grandeza. Enquanto isso, seus detratores (os mais estridentes, além de autoritários, otários - já que ajudaram a promovê-la) pintavam-na como uma traidora de seu país, cujas motivações e existência seriam decorrentes exclusivamente do financiamento recebido da CIA e da grande imprensa dos países ricos.

De um lado, faltou maior senso crítico, já que Yoani - embora articulada - é pouco consistente e tem sérias dificuldades para dar respostas convincentes a perguntas incômodas, como as que lhe foram feitas pelo intelectual francês (claramente simpático ao regime cubano, mas nem por isso impertinente), Salim Lamrani (www.viomundo.com.br/entrevistas/salim-lamrani-um-bate-papo-com-yoani-sanchez.html). De outro lado, revelou-se a incapacidade de simplesmente aceitar como legítimo para Cuba algo que seus defensores advogam como indispensável para seus próprios países: o direito de se opor ao governo, sejam quais forem as razões para isso.

No caso da morte de Hugo Chávez, a divisão se deu entre os que o pintaram como uma besta-fera, cuja emergência não teria qualquer justificativa, e os que o descreveram como um imaculado redentor das massas desvalidas de "Nuestra América". Chávez foi uma liderança de estilo autoritário, cuja entrada na política de seu país se deu por uma tentativa de golpe militar e que perpetrou ações claramente voltadas a manietar a possibilidade de uma oposição realmente competitiva na Venezuela (como na retirada de competências dos governos subnacionais, após vitórias oposicionistas em eleições locais). Contudo, estava longe de ser, como afirmaram alguns intelectuais, um líder totalitário (qualificativo válido para poucos e muito maus, como Hitler, Stálin e Mao). Da mesma forma é estarrecedor que jornalistas, ao questionarem analistas sobre o futuro da Venezuela pós-Chávez, limitem-se a questionar quando será possível consertar as coisas - como se tratasse apenas disso.

Chávez emergiu num país marcado por um dos mais longevos regimes democráticos da América Latina, porém politicamente oligarquizado e economicamente capturado por uma ínfima parcela da população, beneficiária das rendas petroleiras. É a mudança socioeconômica gerada pelos seus anos no governo (reduzindo a pobreza de mais de 50% para menos de 30% da população) o grande fator a explicar sua popularidade e seus seguidos sucessos eleitorais - em eleições limpas, como atestaram observadores internacionais. Por outro lado, isto se tornou razão suficiente para que seus apoiadores fizessem vista grossa à perseguição de opositores em processos judiciais estapafúrdios (veja-se o caso de Teodoro Petkoff), as mudanças de regras eleitorais e de competências governamentais, o culto à personalidade, a cassação de concessões de rádio e TV etc.

Isso tudo para não mencionar situações ridículas, tais quais as constantes alegações de Chávez, de que o governo americano pretendia matá-lo (como Bin-Laden?), o que deu azo a seus continuadores afirmarem ter sido até mesmo seu câncer inoculado pelos Estados Unidos - expulsando o adido militar americano ao anunciar tal disparate. Os emuladores brasileiros de Chávez fazem vista grossa a estas coisas, que não tolerariam se proviessem de outros governos e líderes - mesmo que de forma atenuada. Fazem também um enaltecimento infantilizado do caudilho morto, adotando mesmo o espanhol como língua revolucionária, ao chama-lo de "el comandante". Nada mais distante da capacidade crítica.

O discurso polarizado não é anormal nas democracias. É de se esperar sua ocorrência, sobretudo em períodos eleitorais, quando os apoiadores de um candidato ou partido decerto não optarão por analisá-lo criticamente, deixando a seus adversários a incumbência de fazê-lo. O problema aparece quando tal procedimento vem travestido de objetividade jornalística ou acadêmica, mediante a construção das falácias do homem de palha: faz-se uma caricatura do que se pretende criticar e se critica a caricatura, dizendo-se porém que se trata do caricaturado - leviandade que agrada certo público.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

Fonte: Valor Econômico

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