quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Morte na sexta-feira - Graziela Melo

Morri numa sexta feira ao meio dia. Foi um automóvel em alta velocidade. Eu ia distraída e não vi o sinal fechado. Ele então me pegou e me atirou longe. Fiz uma pirueta no ar, fui rolando, rolando, sempre para cima e caí com o peso do meu corpo de uma altura de uns 6 metros. Espatifei-me no asfalto fumegante. Estrebuchei um pouco. Depois parei de vez. Fiquei quieta para sempre.

Minha alma então se esgueirou pelo lado e saiu do meu corpo. Em pé me olhou de cima. Fez sinal a um dos curiosos que se juntaram à minha volta, para que fechasse os meus olhos. Depois falou: "agora me vou, Graziela. Deixo-te aí esperando que aquele rabecão venha te buscar daqui a umas cinco ou seis horas. Sinto muito. Não posso esperar tanto tempo. Aonde vou é longe e muito tenho que caminhar" E foi-se.

Depois que morri também fiquei cega. E como minha alma já havia ido embora, tudo se complicou. Não pude ver a cara dos que me olhavam no meio da rua. O lume das velas. Nem os que me puseram no caixão. Mas de tudo o que mais me perturbou foi não poder ver as flores com que me cobriram até os pés.

Sentia bem seu aroma. Podia até distinguir as violetas, bem debaixo do queixo, dos bugaris, espalhados à altura do peito. As rosas, essas, eu as senti nas mãos. Menos pelo perfume. Mais pelos espinhos. Ah! Tanto gostaria de tê-las podido ver! Outrora sempre me emocionava à vista das rosas. Quanta falta fez minha alma naquele maldito instante! Em verdade, nunca pensei que ela rompesse tão bruscamente, uma parceria de tantos anos. Houve tempo em que nos amamos tanto. Como se diz: duas almas num corpo só. Éramos corpo e alma num corpo só.

Quando cessou o burburinho e o pranto dos meus, fez-se silêncio. Ouvi ainda, perfeitamente, o bater do martelo contra os pregos que me separavam um pouco mais do mundo. Percebi que me estavam carregando e gingava de um lado para outro. Os cotovelos pontiagudos iam e vinham de encontro à madeira do caixão. Doíam. Era o cemitério. Só quando escutei a massa granulado de caliça chiando entre os tijolos e a pá do coveiro e me senti segura de que ninguém me observava, foi que pude me espreguiçar um pouco. Por fim relaxei. E ri para o mundo com a ironia dos mortos.

Abril 1987

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