sábado, 15 de dezembro de 2012

Ameaça à democracia e à república - Roberto Freire

Grande parte dos brasileiros, particularmente os que se envolvem, direta ou indiretamente, com a política, estão cada vez mais chocados com o comportamento de algumas das figuras mais eminentes do Partido dos Trabalhadores assim como de intelectuais a ele vinculados. É que esta agremiação que tem marcado a vida nacional nos últimos trinta anos, nascera como um modelo de renovação e aceno de esperança para muita gente; um modelo que agora parece se liquefazer, se não no corpo de todo o partido, certamente em parcelas extensas do seu grupo dirigente.

Assim como milhões de cidadãos que participaram da batalha para derrotar o regime autoritário implantado em 1964, nós do PPS, uma vez mais, estamos estarrecidos diante do que ora se passa, à luz do dia e dos refletores, comatitudes e declarações de personalidades que, na essência, nada mais são que aspectos de um movimento contra a democracia e a república. Na verdade, por mesquinho interesse partidário, querem desclassificar uma ação decisória do mais alto nível do Poder Judiciário, segundo os parâmetros do devido processo legal, tachando-a de “julgamento político” ou “julgamento de regime de exceção”.

Como é possível entender que “o partido da ética na política” – pelo menos era assim que o PT se apresentava, repetindo esse mote à exaustão – se transformou a tal nível e atingiu tal degradação, a ponto de sua cúpula estar envolvida num sofisticado e sistêmico caso de corrupção perpetrado por sua cúpula maior, e ser julgada e condenada pela mais alta instância jurisdicional do país como uma “quadrilha de delinquentes”?

Acreditamos que as respostas a tão delicada questão podem ser encontradas no exame da própria trajetória petista, vale dizer, na gênese e desenvolvimento desse partido. Permitam-me parodiar um velho revolucionário, sugerindo que se examinem as três fontes integrantes do PT: os remanescentes dos grupos armados, sempre dispostos contra tudo e contra todos, em seu intolerante projeto de poder a qualquer preço; as lideranças que ascenderam às direções sindicais em substituição aos que foram presos, perseguidos ou mortos nos anos de chumbo; e, finalmente, os militantes católicos com tintas políticas – no caso, as Comunidades Eclesiais de Base –, estimulados pela Teologia da Libertação, com sua “ética de convicção”. No centro desses grupos, havia, de um lado, líderes derrotados da luta armada, como José Dirceu e José Genoino, e, do outro, Lula, dirigente sindical carismático, inteligente e hábil, com acentuada ambição de poder.

Produto dessa parceria, e com altíssimo conceito de si próprio, o PT, desde o primeiro momento, padeceu dos males de sectarismo, estreiteza de visão política, aversão a alianças e vocação hegemonista. Sem considerar a estratégia do regime de enfraquecer a oposição, dividindo-a, o PT no primeiro pleito de que participou, para o cargo de governador, em 1982, lançou candidato em todos os estados em que foi possível e usou um slogan divisionista de que “trabalhador vota em trabalhador”. Em 1985, recusou-se a participar do Colégio Eleitoral, por espúrio e ilegítimo, deixando de votar no candidato dos democratas, Tancredo Neves, contra o da ditadura, Paulo Salim Maluf, e expulsou três parlamentares (Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes), que com seus votos seguiram a única via para derrotar o regime, após a perda das Diretas-Já. Menosprezou o Congresso Constituinte, em 1987/88, pois queria uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva. No decorrer dos trabalhos desta Assembleia, sob a invocação de sua soberania, procurou criar uma dualidade de poderes entre ela e o Executivo (Governo Sarney), que quase a inviabiliza; e, como se fosse pouco, votou contra o texto final da mais democrática das Constituições brasileiras, porque supostamente não tratava de questões dos que viviam do trabalho e de salário.

Nos primeiros momentos da reconstrução institucional do país, em 1989, no segundo turno da primeira eleição direta para presidente da República, a cúpula do PT não admitiu a presença, na campanha em apoio ao candidato Lula, da grande figura de Ulisses Guimarães, o “senhor diretas”. Ao assumir, no ano seguinte, Fernando Collor a Presidência da República, os petistas criaram uma espécie de Governo Paralelo, como se estivéssemos em regime parlamentarista. Na verdade, tratava-se de uma iniciativa equivocada, pois desconsiderava a existência de um governo legal e legítimo, produto da maioria dos votos dos brasileiros, podendo, inclusive, redundar em propostas golpistas. Em fins de 1992, após o impeachment, Itamar Franco assumiu a chefia da nação e organizou um governo de ampla coalizão, contando ainda com algumas das maiores personalidades do país. No curto espaço de dois anos e três meses, o governo Itamar deu início a um processo histórico de mudanças, porém o PT se recusou a dele participar.

Em abril de 1993, no plebiscito sobre forma e sistema de governo, o PT foi um dos raros partidos de esquerda a votar favorável ao presidencialismo vitorioso (o que pensar dessa recusa à forma mais avançada de democracia, o parlamentarismo?). No final daquele ano, estava prevista a revisão constitucional, colocada no texto da Carta de 1988 por exigência particularmente dos petistas, a pretexto de que aquela não era a sonhada pelos brasileiros, daí porque, cinco anos depois, deveriam ser feitas pelo Congresso Nacional as mudanças necessárias. No entanto, chegado o momento dessa revisão,apenas o PPS se manteve a ela favorável. O PT e o PCdoB foram radicalmente contrários a ela, migrando de posição sem dar a menor satisfação à opinião pública.

Na segunda eleição presidencial após o fim da ditadura (1994), o PPS, em convenção nacional, decidiu apoiar a candidatura da Frente Brasil Popular, encabeçada por Lula, embora com divergências explícitas quanto à estreiteza da frente e à condução da campanha, principalmente o grosseiro erro de subestimar e até ridicularizar o Plano Real e seu alcance para a economia e o povo. Fernando Henrique elegeu-se logo no primeiro turno com razoável diferença de votos, o que ocorreria também em 1998. Porém, já no início deste segundo mandato, o PT e entidades sindicais a ele vinculadas promoveram movimento de natureza golpista, com palavras de ordem como “Fora FHC” e “antecipação das eleições”, que culminou com manifestação liderada por Lula na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

E haveria muitos fatos mais, porém fiquemos nesta constatação básica: em instantes decisivos da transição democrática, prevaleceu sempre o mesquinho interesse partidário.

Constatando que por este caminho não iria atingir o objetivo maior do poder, com três derrotas consecutivas na disputa presidencial, e duas delas ainda no primeiro turno, a cúpula petista muda da água para o vinho. Para se apresentar em condições melhores no pleito de 2002, lança uma “Carta aos brasileiros”, com o compromisso de manter a política macroeconômica anterior, e cria uma figura de ficção, o “Lulinha, paz e amor”. Temos de convir que tais “aberturas”, insistentemente promovidas por um marketing extremamente profissional e audacioso, ajudou, e muito, o PT a ganhar o comando do governo federal, em segundo turno.

Sem clareza a respeito das turbulências que iria enfrentar, já que a maioria dos partidos, sobretudo os maiores, não fazia parte da base governista, o PT, ainda no primeiro semestre de 2003, começou a atrair líderes de partidos, procurando conquistar legendas ou parlamentares individuais, de forma a levá-los a se comprometer com as propostas a ser encaminhadas ao Congresso Nacional.

Exemplo disso aconteceu conosco. Numa noite de junho daquele ano, no hotel Aracoara, em Brasília, reunia-se a bancada do PPS para discutir o seu relacionamento com o governo. O encontro, que era acompanhado pelo ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional,já estava bem avançado quando o deputado João Hermann propôs que seria bom aproveitar a oportunidade, em que se contava com a presença do ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, para que o Partido se declarasse aberto para a vinda de vinte e poucos parlamentares, que trocariam suas legendas pela do PPS. Dirceu, como não tivesse articulado nada, declarou-se disposto a conversar a respeito. Só que eu, como presidente do PPS, salientei que tão delicado assunto não era para ser discutido ali, pois não era tão simples como se imaginava e precisava ser avaliado do ponto de vista político pela direção nacional e as estaduais já que cada instância iria examinar e decidir caso a caso, se fosse considerado oportuno e conveniente. Naquele então não se tinha clareza alguma do que se arquitetava. Se tivesse aceito a proposta, o PPS, sem nenhuma dúvida, estaria hoje envolvido no processo do mensalão. Nos primeiros 15 meses da gestão Lula, 104 deputados haviam trocado de partido, reforçando a base governista.

Desde que chegou ao Planalto, o PT tornou-se partido da ordem, dividindo o poder com grupos econômico-sociais conservadores. O lulopetismo montou uma estrutura que envolve grupos de interesses antagônicos (corporações empresariais -sobretudo do sistema financeiro - e sindicalismo, elites e excluídos), num verdadeiro “Estado Novo” que tudo absorve e coopta. Poderia administrar o país a partir da centro-esquerda, como o fizera o presidente Itamar Franco, mas efetivamente não quis. Ao manter o modelo econômico-financeiro do real, que condenara veementemente por ser neoliberal e antipovo, teve a sorte de colher os frutos positivos possíveis dez anos depois da reforma da moeda, e isso, ademais, num período em que a economia mundial vivia sincronizadamente um dos seus melhores momentos desde o fim da II Guerra Mundial. Deste modo, conseguiu montar uma extensa base de poder, ao mesmo tempo em que montava uma artilharia retórica poucas vezes vista contra a suposta “herança maldita” deixada pelos antecessores.

Permitam-me relembrar fato pouco comum na história política brasileira: o PPS rompeu com o governo Lula em dezembro de 2004. No documento “Sem mudança não há esperança”, destacava-se que, em dois anos de gestão lulopetista, pouco havia sido feito para superar as condições sociais e as dificuldades econômicas do passado, remoto ou recente. Na gestão pública, não se conseguira avançar na reforma democrática do Estado; no campo econômico, a ortodoxia continuava intocável e o velho receituário imperava soberanamente; na área social, o avanço era mínimo e, pior, perdera-se tempo ao se insistir em políticas compensatórias e assistencialistas (como, por exemplo, o Fome Zero, que seria substituído pelo Bolsa Família, cuja concepção foi herdada do período anterior), com impacto limitado na redução das imensas desigualdades sociais, quando não perpetuadoras destas. Na política, pouco se fizera para alterar padrões culturais e comportamentais no ato de governar, resultando na manutenção de práticas fisiológicas e na partidarização do Estado em escala nunca vista anteriormente, afetando gravemente a própria capacidade gerencial.

Passados dez anos, o que se conclui é que Lula, Dilma e o PT, lamentavelmente, nunca tiveram projeto de Brasil, mas apenas projeto de poder, daí porque dificilmente poderiam implantar as bases para promover as mudanças exigidas pela situação do país, o que vem frustrando esperanças. Para se ter uma ideia do descalabro, podemos resumir a situação brasileira nos seguintes dados: somos hoje a sexta economia do mundo (em termos de PIB, Produto Interno Bruto) e ocupamos o 87º lugar (em termos do IDH, o Índice de Desenvolvimento Humano), com desigualdades sociais chocantes até mesmo para os padrões sul e centro-americanos.

Além de perigosos sinais de omissão e falta de autoridade, aprópria questão ética – um patrimônio importante de qualquergoverno para enfrentar os mais variados problemas, inclusiveeconômicos –, vem sendo abalada com permanentes denúncias,exemplificadas sobretudo nos escândalos do mensalão, sanguessugas, aloprados, dólar na cueca etc., agravados por uso de esfera de influência e atos inaceitáveis quanto à postura pública por parte de alguns dos principais ministros de Lula e de Dilma (quase vinte deles foram obrigados a deixar o governo), sem falar no clima deconfronto com instâncias de controle (como o Tribunal deContas da União). Desde o início dolulopetismo, o Planalto e seus agentes intervêm permanentemente,e de maneira grosseira, na vida do Parlamento em nomeda governabilidade. Insulto à República foi o fato de o Legislativopassar a ser tratado como extensão do Executivo, e escárnio nãomenos insultuoso o fato de o então presidente Lula lamentar publicamenteter de submeter-se às decisões do Poder Judiciário.

Curioso constatar que, todas às vezes em que os petistas são flagrados e denunciados em atitudes pouco democráticas e republicanas, ou se tornam alvo da reação popular, eles colocam a nu sua concepção e prática de democracia. (A propósito, basta lembrar o que ocorreu em julho de 2007 na abertura dos Jogos Panamericanos, no Maracanã, quando milhares de pessoas vaiaram o presidente Lula por seis vezes consecutivas, repetindo o fato no encerramento daquela competição.) Começam com ameaças abertas, em declarações e discursos sucessivos, contra o que chamam de “golpismo das elites” e passam a arrancar do baú atrasados esquemas de divisão da sociedade entre “bons” (eles) e “maus” (os que se opõem a seus absurdos); em seguida, pedem que as massas se decidam entre ficar com o “atraso” ou com o “progresso”, entre ficar com os “inimigos da pátria” ou com os “patriotas”; e terminam ameaçando levar a divergência para as “ruas”, se assim for necessário, até porque “nunca na história deste país” ninguém teria mobilizado mais gente do que eles.

Na verdade, tal reação petista demonstra que os diferentes setores da sociedade não deveriam ter o democrático direito de opinião e de protesto e, pior, de crítica ao governo. Ao tentar, com insistência, pôr a culpa na mídia, considerá-la “golpista” e “fazer o jogo das elites”, pelo simples dever de divulgar fatos e declarações fora da “verdade oficial”, Lula e seu partido revelam gostar apenas de homenagens e louvaminhas de jornalistas criados e nutridos à sombra do poder. Por isso, reveste-se de igual gravidade o fato de o governo lulopetista estimular e financiar a ação de grupos que pedem abertamente restrições à liberdade de imprensa, propondo mecanismos autoritários de submissão de jornalistas e empresas de comunicação às determinações de um partido político e de seus interesses. Repugnante, também, é ver esse “departamento de imprensa e propaganda” ser mobilizado para reescrever a História, procurando desmerecer o trabalho de quantos construíram as bases da estabilidade econômica e política, com o fim da inflação, a democratização do crédito, a generalização do ensino fundamental, a expansão da telefonia e outras transformações que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo.

A prática fisiológica e o aparelhamento do Estado, como formas de estabelecer “maioria”, têm causado, entre outras coisas, a crescente desmoralização da política e o desprezo do Parlamento como instância de representação. A prática de cooptação de parlamentares para a coalizão governista, a partir de ações não republicanas (o mensalão é apenas um exemplo), e o enorme número de Medidas Provisórias (MPs) para apreciação e deliberação do Congresso fazem com que o Executivo, na prática, determine a pauta do Legislativo, esvaziando este Poder da missão precípua de elaborar leis e fiscalizar os atos governamentais. Estaríamos tão distantes assim do conceito de hiperexecutivo ou de presidencialismo imperial, com o monopólio prático da política, em detrimento da própria autonomia da sociedade civil?

No caso concreto do mensalão, que expôs à execração pública as maiores figuras petistas, julgadas e condenadas pelo Supremo Tribunal Federal,era admissível que o PT e Lula usassem o tradicional jus sperniandi. Mas deveriam fazê-lo de forma correta e equilibrada, não tentando desmoralizar um dos três Poderes da República nem muito menos agindo sediciosamente. Aliás, é bom relembrar que algumas das mais influentes lideranças petistas (a começar de Lula, Dirceu e Genoino) declararam à saciedade, no inicio do processo, que o mensalão não existia, descaramento que insistiram em repetir durante o processo do julgamento, como se a nossa Suprema Corte estivesse julgando algo inexistente. Deveriam saber, eles e seus acólitos, que não adianta fazer esse jogo de cena, pois a História brasileira já incorporou aos seus Anais esse sério atropelo da dignidade da função pública e essa ameaça à democracia e à República.

Esta nossa parcial avaliação de alguns momentos da trajetória do PT parece-nos importante para que se possa avaliar como pensaram e pensam, agiram e agem suas principais lideranças. Isto porque estamos vivendo um momento em que vozes petistas voltam, arrogantemente, a reivindicar a posição de construtores da democracia brasileira, como se o fiat histórico ocorresse com a fundação do PT e o instante precedente nada mais fosse do que o “caos” anterior ao “Éden” petista. Por trás da aparência, há forte influência de ex-militantes de setores ultraesquerdistas, agregada ao messianismo que alimenta parcelas do movimento sindical e popular, baseadas em certas concepções religiosas da política ou mesmo num marxismo atrasado, implicando, contra as boas intenções que possam ter, métodos autoritários de agir e visões com precária vocação democrática. Tudo isso se dá porque, em tais concepções, a democracia é vista apenas como meio de atingir o poder, e não como método fundamental para a transformação do país e para a própria convivência civil.

Dada a extrema gravidade dos crimes atribuídos ao núcleo político do chamado escândalo do mensalão, não basta só punir os autores: é preciso, também, apresentar soluções institucionais para as falhas do sistema político, por meio de uma ampla reforma que previna novas ilicitudes. Da mesma forma, impõe-se fazer funcionar os sistemas de controle externo e interno dos gastos públicos, extinguir a diferença entre corrupção ativa e passiva, aumentar as penas a serem impostas a corruptos e corruptores, entre outras ações.

Não há outro caminho para solucionar os problemas nacionais fora da democracia, um valor permanente e universal. E, quando falamos em democracia, falamos em criar condições que possam romper com o sebastianismo e o messianismo, os quais, de alguma forma, estiveram presentes no amplo movimento que levou Lula ao poder e transparecem, claramente, no exercício do poder por parte do lulopetismo, roubando o protagonismo da sociedade e das suas inumeráveis formas de auto-organização.

Advogado, deputado federal por São Paulo e presidente nacional do Partido Popular Socialista

Fonte: Revista Política Democrática, nº 34 págs. 13-20

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