domingo, 16 de setembro de 2012

Ética republicana - Celso Lafer

O que quer dizer uma conduta republicana? Por que essa referência, relacionada à afirmação de espírito público, é importante para o debate nacional?

O termo República tem, entre seus significados, o sentido amplo de comunidade política organizada. O título do livro de Hannah Arendt de 1972, Crises da República, aponta para esse sentido amplo de comunidade política, mas ao mesmo tempo indica que a crise dos EUA, naquela ocasião, tinha sua raiz na falta de ética republicana proveniente do uso da mentira e da glorificação da violência.

Na perspectiva mais específica de formas de governo, República contrapõe-se à Monarquia. Assinala a diferença entre o poder exercido em função de direitos hereditários e o poder eleito, direta ou indiretamente, pelo povo. Nesse sentido, República tem afinidades com democracia e aponta para a igualdade.

A contraposição Monarquia/República remonta aos romanos, que depois da exclusão dos reis substituíram o governo de um só pelo governo de um corpo coletivo. Na elaboração do conceito de República teve grande peso a reflexão de Cícero, que diferenciava a res publica - a coisa pública - da privada, doméstica, familiar, estabelecendo, assim, a distinção entre o privado, o particular a alguns, e o público, o comum a todos, que por isso deve ser do conhecimento de todos. Daí a origem do princípio da publicidade da administração pública, previsto na Constituição em seu artigo 37.

Para Cícero, o público diz respeito ao bem do povo, que não é uma multidão dispersa de seres humanos, mas sim, numa República, um grupo numeroso de pessoas associadas pela adesão a um mesmo direito e voltadas para o bem comum. A dedicação ao bem comum está na raiz do princípio da moralidade da administração pública, igualmente previsto no mesmo artigo da Constituição.

Faço essas remissões para apontar que a importância do espírito público é inerente a uma postura republicana, o que quer dizer, em primeiro lugar, que não cabe misturar o público e o privado e que é inaceitável, numa República, o patrimonialismo do uso privado da coisa pública. Esse é um dos pontos de partida do republicanismo.

Este, na teoria política contemporânea, não tem maior interesse no contraponto Monarquia/República, que perdeu atualidade na agenda política do século 21. Está voltado para as consequências da falta de ética na política e na sociedade, da qual um sintoma é a generalizada perda do senso de vergonha, que é sempre a expressão de um sentimento moral. Um exemplo é a desfaçatez da conduta dos gestores dos bancos que levaram à crise financeira mundial.

Para Montesquieu, o princípio que explica a dinâmica de uma República, ou seja, o sentimento que a faz durar e prosperar, é a virtude. É nesse contexto que se pode dizer que a motivação ética é de natureza republicana. Isso passa, como diz Viroli, pela virtude civil do desejo de viver com dignidade e pressupõe que ninguém poderá viver com dignidade numa comunidade política corrompida.

Numa República, como diz Bobbio num diálogo com Viroli, o primeiro dever do governante é o senso de Estado, vale dizer, o dever de buscar o bem comum, e não o individual, ou de grupos; e o primeiro dever do cidadão é respeitar os outros e se dar conta, sem egoísmo, de que não se vive em isolamento, mas sim em meio aos outros.

É por essa razão que a República se vê comprometida quando prevalece, no âmbito dos governantes, em detrimento do senso de Estado, o espírito de facção voltado não para a utilidade comum, mas para assegurar vantagens e privilégios para grupos, partidos e lideranças. O intenso e aprofundado "aparelhamento do Estado" que vem caracterizando o PT no poder é expressão de conduta não republicana.

O conceito de República aponta para o consensus juris do governo das leis, e não dos homens, ou seja, para o valor do Estado de Direito. Assim, não é por acaso que o papel de uma Constituição e do constitucionalismo foi afirmado nos EUA, que, como a França, assinala a emergência das Repúblicas modernas. O governo das leis obstaculiza o efeito corruptor do abuso do poder das preferências pessoais dos governantes por meio da função equalizadora das normas gerais, que assegura, ao mesmo tempo, a previsibilidade das ações individuais e, por tabela, o exercício da liberdade. Trata-se, assim, de um modo de governar baseado no respeito às leis. É por essa razão que os princípios da legalidade e da impessoalidade da administração estão consagrados no artigo 37 da Constituição.

Naturalmente, para o bom governo não bastam as boas normas, como as do artigo 37 da Constituição. É preciso que sejam cumpridas. É por esse motivo que a impunidade é um fator de erosão do governo das leis e uma modalidade da sua corrupção. Por isso cabe louvar a conduta republicana com que o STF vem lidando com o mensalão.

Numa República as boas leis devem ser conjugadas com os bons costumes de governantes e governados, que a elas dão vigência e eficácia. A ausência de bons costumes leva à corrupção, palavra que vem do latim corrumpere, que significa destruição e vai além dos delitos tipificados no Código Penal. Políbio, tratando dos modos pelos quais um regime político se vê destruído pelo movimento da corrupção, recorre a uma metáfora esclarecedora. A corrupção, num regime político, exerce papel semelhante ao da ferrugem em relação ao ferro ou ao dos cupins em relação à madeira: é um agente de decomposição da substância das instituições públicas.

O espírito público da postura republicana é o antídoto para esse efeito deletério da corrupção. É o que permite afastar a mentira e a simulação, inclusive a ideológica, que mina a confiança recíproca entre governantes e governados, necessária para o bom funcionamento das instituições democráticas e republicanas. É por isso que a afirmação de uma ética republicana não é um "moralismo trivial". Está na ordem do dia no Brasil e no mundo como condição de um bom governo.

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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