quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O STF sob julgamento - Cláudio Gonçalves Couto

O julgamento dos réus do mensalão no Supremo Tribunal Federal tem suscitado a disseminação de uma ideia na opinião pública e junto ao público em geral: se o STF não for duro com os acusados, contribuirá para a perda de credibilidade de nossas instituições republicanas. Por vezes, esta ideia é sugerida de forma indireta, por vezes é verbalizada abertamente. Um exemplo do primeiro caso foi a fala da Corregedora Nacional de Justiça, Eliana Calmon, na semana passada: "Será um bom momento para se ter a ideia do que representa o STF dentro de uma expectativa da sociedade. Acho que há por parte da nação uma expectativa muito grande e o Supremo terá também o seu grande julgamento ao julgar o mensalão, como ele se porta diante dos autos. É neste momento que o Supremo passará a ser julgado pela opinião pública".

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, num vídeo divulgado pelo Observador Político (www.observadorpolitico.org.br), fez uma brevíssima análise, dotada de saudável objetividade sociológica. Observou ele que os juízes não decidem num vácuo social e suas decisões ocorrem num contexto que é eminentemente político - ainda que sigam a lei e o que está nos autos. Essa declaração foi interpretada, no título de matéria publicada ontem na "Folha de S. Paulo", como uma recomendação a que o STF ouvisse a opinião pública. Não foi isso que disse FHC, mas a torção - transformando uma descrição em prescrição - revela anseio latente pela condenação dos réus, satisfazendo assim as expectativas do público por um justiçamento.

Por coincidência, isto é argutamente notado na mesma "Folha" de ontem num ponderadíssimo artigo de Jânio de Freitas, em que ele observa: "Se há indução de animosidade contra os réus e os advogados, na hora de um julgamento, a resposta prevista só pode ser a expectativa de condenações a granel e, no resultado alternativo, decepção exaltada. Com a consequência de louvação ou de repulsa à instituição judicial." Diante disto, como poderíamos interpretar a assertiva final do vídeo de FHC, afirmando ter confiança "de que o Supremo mostrará que as instituições no Brasil valem"?

No mensalão o STF julga pessoas e não teses

Nos últimos anos, em boa medida com o auxílio da TV Justiça, o STF tem-se exposto ao escrutínio do público. Isto é de se esperar numa democracia que amadurece, ainda mais com o papel proeminente que as diversas mídias assumiram na atualidade. Com isto, decisões que antes eram tomadas aristocraticamente pelos juízes, democratizam-se, pois o olímpico isolamento da Corte Suprema é rompido, dando lugar à pressão popular sobre os juízes em casos de grande repercussão. Todavia, o significado dessa democratização das decisões judiciais varia de acordo com a natureza do que é julgado.

Recordem-se casos recentes de grande visibilidade e cobertura da mídia: interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, pesquisas com células-tronco embrionárias, união civil de pessoas do mesmo sexo, lei da ficha limpa, papel do Conselho Nacional de Justiça, fidelidade partidária. Em todos esses casos, a decisão do STF, mesmo que partindo de uma situação concreta, versava principalmente sobre teses jurídicas. É ou não lícito interromper a gravidez em casos de anencefalia? A Lei da Ficha Limpa está de acordo com a Constituição? Ela pode valer para eleições ocorridas a menos de um ano de sua aprovação? Uma união constituída de fato entre pessoas do mesmo sexo é equivalente a uma unidade familiar e merece reconhecimento jurídico? A quem pertence o mandato, ao partido ou ao político eleito?

Ao julgar teses sobre a validade ou não de certas normas, tendo de interpretar se (e como) essas estão de acordo com a Constituição, os juízes decidem com um grau de liberdade considerável. Operam nos interstícios do arcabouço legal. Buscam cobrir lacunas e, assim, atuam de certa forma como legisladores. Eles não são os legisladores formalmente constituídos e eleitos do parlamento, mas aqueles que atuam a partir de (e para além) dos marcos legais definidos pelos parlamentares. Por isto, decidem de forma abstrata, já que suas decisões - ainda que possam ter validade para um eventual caso presente - valerão sobretudo para casos futuros, ainda desconhecidos. Em tal situação, os juízes estão necessariamente mais abertos às pressões da opinião pública, já que a formação de uma convicção sobre abstrações legais e jurídicas se dá justamente no confronto de argumentos universalizáveis.

No caso ora em tela, o do mensalão, a situação é distinta. Os ministros do Supremo julgarão fatos concretos e indivíduos particulares. Claro que em qualquer julgamento sempre é possível discutir teses com base no caso concreto sob análise, como na questão dos réus sem direito ao foro privilegiado, cujos advogados requerem que tenham seu julgamento remetido à primeira instância. Mas o peso de uma decisão como esta é menor do que a referente aos fatos julgados, sua materialidade e autoria. Houve ou não compra de parlamentares? Se houve, quem comprou e quem foi comprado? Foi materialmente provado o envolvimento deste acusado em particular no esquema, ou há apenas indícios e especulações? É sobre este tipo de questões (que não são abstrações) que o STF decidirá.

Em tal situação, as pressões da opinião pública tendem a ser menos eficazes, pois o principal do que se apresenta ao juiz não são argumentos universalizáveis sobre leis, mas evidências concretas da existência ou inexistência de provas. Assim, mesmo que o clamor das ruas seja pelo justiçamento de um indivíduo, se as provas contra ele forem falhas ou inexistentes, o juiz não poderá decidir com base na intuição. Por outro lado, mesmo que a opinião pública simpatize com um réu, se as evidências lhe forem claramente desfavoráveis, o juiz terá de condená-lo. Noutras palavras, o julgamento tende a ser mais técnico e menos político - desde que, é claro, as instituições judiciais realmente valham.

O problema é que se porventura o STF produzir uma decisão que não seja do agrado do público, corre o risco de ser condenado por ele. Isto não seria necessariamente um julgamento justo.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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