sexta-feira, 31 de agosto de 2012

"Mais unhas há" - Maria Cristina Fernandes

Decano do Supremo Tribunal Federal, o ministro Celso de Mello foi o único da atual composição da Corte a participar do julgamento de Fernando Collor de Mello em 1994. Fez um fundamentado voto contra a licitude das provas obtidas pela investigação policial e parlamentar - as planilhas do esquema PC Farias de desvio de dinheiro público, apreendidas nos computadores do então tesoureiro:

"A absoluta ineficácia probatória de elementos de convicção - cuja apuração decorreu, em sua própria origem, de comportamento ilícito dos agentes estatais - torna imprestável a prova penal em questão, subtraindo-lhe, assim, a possibilidade de fundamentar, como apoio exclusivamente dela, qualquer eventual condenação de índole penal" (13/12/1994).

O ex-presidente tinha sido cassado pelo Congresso Nacional num dos momentos de maior mobilização cívica da República. O voto de Mello contribuiu para a absolvição do ex-presidente e lhe permitiu a retomada da carreira política.

Rigor terá que se manter mesmo sem os holofotes

Egresso do Ministério Público, Mello havia sido indicado pelo ex-presidente José Sarney para o cargo. Tinha, à época, 49 anos e estava havia cinco na Corte. Dali a mais cinco assumiria a presidência como o mais jovem ministro a ocupar o cargo. Desde então só viu crescer entre seus pares e advogados o respeito pelo saber jurídico e pela independência com que se conduz no tribunal.

Na quarta-feira, Mello deu um longo e igualmente fundamentado voto pela condenação dos réus do primeiro capítulo do mensalão. Nele, reconhece a eficácia de provas colhidas pela polícia federal e pela Comissão Parlamentar de Inquérito, desde que sejam complementares àquelas que passam pelo contraditório.

Ao corroborar com a denúncia do Ministério Público, Mello fez uma aguerrida defesa da necessidade de o Judiciário não se manter indiferente ao lamaçal. Foi muito mais duro do que 18 anos atrás:

"Agentes públicos que se deixam corromper, qualquer que seja sua posição na hierarquia do poder, e particulares que corrompem os servidores do Estado (...) são eles corruptos e corruptores, os profanadores da República, os subversivos da ordem institucional, são eles os delinquentes marginais da ética do poder, são os infratores do erário que trazem consigo a marca da indignidade e portam o estigma da desonestidade".

Mudou Celso de Mello, mudou o Supremo ou o Brasil? A julgar pelas declarações dadas pelo ministro a Juliano Basile e Caio Junqueira antes do julgamento (Valor, 2/8/2012), mudaram os brasileiros: "Hoje a reação é mais intensa do que no caso Collor".

A pressão sobre este julgamento do caso de corrupção com o maior número de réus que já chegou ao Supremo se dá mais pela extensa cobertura da imprensa do que pela mobilização social. Ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, o advogado Marcelo Nobre diz que a primeira resposta do julgamento a esta pressão é que o Supremo não se deixa aparelhar tão facilmente por quem indica seus ministros. Basta ver que dos seis indicados pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quatro já endossaram as condenações do maior escândalo político de seu governo.

Nobre não tem dúvidas de que o descrédito acumulado pelo Judiciário nas últimas décadas o impulsionou a assumir um papel mais político, mas indaga o que acontecerá com a jurisprudência firmada no caso - não apenas quando se reduzirem os holofotes sobre a Corte mas também, e principalmente, com as repercussões na primeira instância onde as luzes sempre estão desligadas.

Ainda é cedo para concluir se o rigor do Judiciário com corruptos e corruptores vai tornar a política mais decente mas talvez já se saiba que seu jogo vai ficar mais duro.

A disputa política judicializou-se a despeito de uma jurisprudência garantista. Agora que o Judiciário entrou no jogo é de se imaginar que a política ganhe ainda mais intimidade com os tribunais.

As desacreditadas CPIs, por exemplo, ganham um novo fôlego com essa primeira rodada do julgamento. Os ministros foram majoritários na aceitação de provas lá produzidas.

O entendimento também joga novas luzes sobre a aceitação do grampo como prova. Há duas operações da Polícia Federal, de amplas repercussões políticas, Castelo de Areia e Satiagraha, cuja validade está para ser decidida pelo Supremo porque baseadas em grampos que não teriam sido produzidos sob o amparo da lei.

O silogismo pode parecer simplista, mas se o Supremo aceita as provas da CPI e esta acata grampos em seus inquéritos, o Supremo também os validará?

Víctor Gabriel Rodríguez, professor de Direito Penal da USP, vê com naturalidade que fronteiras menos nítidas se desenhem entre os poderes da República. A Constituição já o previra ao submeter a escolha dos ministros do Supremo ao Executivo e sua aprovação, ao Congresso. Mas teme o desgaste a que a Corte possa se submeter por exposição excessiva. Em alguns dos votos que acompanhou do julgamento, Rodríguez teve dúvidas se os ministros dirigiam-se aos pares de seu colegiado ou ao telespectador.

Ao contrário dos demais, no Judiciário desgaste não se resolve no voto. Para evitá-lo, só restará aos ministros votar com o mesmo rigor que agora se aplica a tantos quantos chegarem às suas portas, esteja ou não sob pressão da opinião pública.

Na sessão mais importante da semana, o ministro Celso de Mello citou "A Arte de Furtar", escrito em 1654 por um ministro da Corte de Suplicação portuguesa. Nele, Antonio de Souza de Macedo fala das unhas agudas, bentas, fartas, mimosas, vagarosas, corteses, tímidas e insensíveis dedicadas ao ofício.

Por mais variadas que fossem não esgotariam seus propósitos. No último capítulo do livro, denominado "Desengano geral a todas as unhas", o colega setecentista dos magistrados brasileiros conclui: "Mais unhas há".

"Estava reservado ao nosso tempo ser testemunha disso", disse Celso de Mello em seu voto. Como o ministro está para se aposentar, deve se unir à massa de telespectadores que torce por um Supremo sem arranhões ao fim desta empreitada.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Nenhum comentário: