segunda-feira, 18 de junho de 2012

Para suprimir duas injustiças:: Renato Janine Ribeiro

O sistema federativo brasileiro está baseado em duas injustiças, que mais ou menos se compensam. A primeira é a desigualdade na representação dos cidadãos na Câmara de Deputados. A segunda é a cobrança do ICMS no Estado de origem, não no de destino. As duas injustiças se equilibram: a primeira prejudica São Paulo, politicamente; a segunda beneficia esse Estado, fiscalmente. A última é boa para as finanças estaduais paulistas. A primeira é ruim para a participação dos cidadãos que moram em São Paulo nas decisões políticas que passam pelo Congresso.

Numa federação, é correto que Estados de população desigual tenham igual representação em alguma instância. Normalmente, esta é o Senado. Assim acontece nos Estados Unidos. Cada Estado tem dois senadores. Já a Câmara de Deputados expressa a população do país, repartida pelos Estados. Lá, nenhum tem menos de um deputado; no Brasil, porém, o mínimo é oito. Foi de quatro no começo da República, subiu para seis com o golpe do general Geisel em 1977, quando ele fechou o Congresso e emendou a Constituição com sua simples assinatura, e atingiu oito na Constituinte. Geisel também introduziu um máximo de cinquenta e cinco deputados, especificamente para São Paulo, o Estado mais desenvolvido e que, por isso, poderia ser o mais crítico da ditadura. Em 1988, os constituintes subiram o teto para setenta. Resumindo, o Estado de São Paulo tem menos deputados do que deveria ter, em condições normais. Já notei que essa situação enfraquece a própria Câmara, porque ela se torna uma espécie de segundo Senado.

Defensores da desigualdade argumentam que ela evita a excessiva preponderância do Estado mais rico. Discordo. Em primeiro lugar, a diferença de população tem um fórum no qual é compensada e até zerada: o Senado. Segundo, a Câmara não representa os Estados, papel que é do Senado, mas os brasileiros. A divisão das bancadas por Estados é apenas um expediente para classificar os cidadãos do país. Quer dizer que a redução da bancada paulista afeta, não os paulistas, mas os brasileiros que votam em São Paulo, de qualquer origem que sejam - e esse Estado recebe migrantes do país todo. Terceiro, numa democracia, a principal casa do Congresso é justamente a eleita pelo povo, o que é o caso de nossa Câmara, dos Comuns britânicos e dos Representantes americanos. Sem dúvida, o Senado brasileiro e o dos Estados Unidos são eleitos hoje pelo voto direto dos cidadãos, mas eles não representam o povo e sim os Estados. A Casa que representa o povo, no Brasil, sofre assim uma deformação, pela qual alguns são mais iguais do que outros.

O Brasil poderia negociar o fim de duas injustiças

Finalmente, não é verdade que, com uma menor representação dos brasileiros de São Paulo na Câmara, se compensará o poder econômico do Estado. Na verdade, a participação política é o melhor antídoto ao excesso de poder econômico. É a política que limita os perigos da economia. É o voto do cidadão o melhor controle sobre a desigualdade acentuada pelo capitalismo. Por isso, o poder econômico sediado em São Paulo seria mais bem limitado se o voto de todos os brasileiros, inclusive os que residem nesse Estado, fosse igualmente considerado nas eleições legislativas federais.

A outra injustiça é a cobrança do ICMS na origem e não no destino. Obviamente, ela beneficia São Paulo. É injusta porque o imposto sobre vendas deve ser cobrado onde a venda se efetua, melhor dizendo, onde está o comprador. Agora, assim como "São Paulo" no caso de sua bancada na Câmara não é um todo homogêneo, uma entidade metafísica própria, também não o é na hora em que aufere impostos adicionais. O "São Paulo" politicamente prejudicado não é o mesmo "São Paulo" fiscalmente beneficiado. Basicamente, quem ganha com a tributação na origem são o governo estadual e, em decorrência, os municipais. Sem dúvida, isso permite que obras sejam realizadas, que favorecem a sociedade. Mas continua havendo uma diferença entre os dois papéis atribuídos a São Paulo. Se os cidadãos brasileiros que residem no Estado tiverem na Câmara o peso que é seu, pela natureza democrática da representação popular, terão voz para decidir, no foro competente, questões que dizem respeito à arrecadação e dispêndio federais, à organização do país e outras, que os afetam, não como paulistas, mas como brasileiros. O relativo isolamento de São Paulo em relação ao resto do país diminuirá. Nossa democracia ganhará com isso, pois desconheço um regime democrático que funcione na base da redução do valor dos votos de sua unidade subnacional mais populosa.

Por que não acabar com essas duas injustiças? Faz algum tempo, a injustiça na cobrança do ICMS está sendo enfrentada. O Valor de quinta-feira diz que está no horizonte a transferência definitiva da cobrança do ICMS para o destino. Ora, por que não aproveitar para anular, a um só tempo, duas injustiças que até hoje se equilibram? Se a vantagem tributária paulista for extinta, por que manter a desvantagem política que prejudica os brasileiros que votam nesse Estado? Seria um ato de estadistas promover essa mudança. Até porque, como já disse, as duas injustiças são de ordem diferente. Na democracia, não há como defender que uma categoria inteira de pessoas, pelo acaso de sua origem ou pelo acaso de sua residência, tenha diminuído o valor de seu voto. Adaptando a frase de um juiz americano, para quem a luz era o melhor detergente da corrupção, podemos dizer que na democracia o valor do voto é o melhor detergente para a injustiça e a desigualdade. Pena que nossos políticos não tenham negociado o fim, conjunto, de dois erros.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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