segunda-feira, 14 de maio de 2012

“Pague-se, mas que ladrões”:: Wilson Figueiredo

“Pague-se, mas que ladrões”, segundo a tradição oral, exprime o desabafo com que Floriano Peixoto, o primeiro vice-presidente e, logo depois, o segundo presidente da República, liquidou a fatura levada à sua mesa por algum ministro. Certamente relativa a algum fornecimento ou obra pública, nos primeiros passos da República no terreno minado. O estilo direto era o próprio presidente e, lamentavelmente, não veio a ser o padrão da República. Passados 123 anos, o mandato parlamentar trocou a característica de representar os cidadãos pela imperdível oportunidade de enriquecimento pessoal. Pesquisa de opinião pública localizou este ano o Congresso Nacional no desconfortável último lugar na confiança dos brasileiros.

Floriano, pelo que se sabe e pelo que se lê, não era de muitas palavras. Mas a mão pesada e a franqueza do temperamento marcaram o começo da era republicana. O que se passa hoje no primeiro nível da vida nacional não honra a cidadania, e o que se ouve à boca pequena, se vê na televisão, o rádio propaga e o noticiário dos jornais não deixa cair, leva a pensar no que está à frente, com razoável previsibilidade: o brasileiro não esconde a sensação de que nunca se roubou tanto, e que roubar se tornou esporte nacional. Há quem fale de cleptomania coletiva.

Passados todos esses 123 anos do golpe de Estado de 15 de Novembro, o que mudou mesmo foi a imprudência de experimentar a reeleição. Depois de tudo que ocorreu desde o fim da República Velha em 1930, o Brasil desfruta do melhor e mais prolongado recomeço, entre motivos crônicos que aguçam contradições políticas e sociais já históricas.

Floriano Peixoto, o primeiro vice a chegar à presidência da República, tanto quanto o primeiro presidente, não atendeu à exigência da Constituição, que nasceu da Constituinte dois anos depois. Nenhum dos dois, presidente e vice, era ungido pelo voto do cidadão brasileiro. Foi pelo voito indireto. Não houve pecado original, mas as conseqüências do pecado venial deixaram marcas. Com a renúncia de Deodoro antes da metade do mandato de quatro anos, Floriano não atendeu à exigência constitucional e assumiu a presidência assim mesmo, para ganhar tempo, baseado no princípio anterior à Constituição, e que só definiu a República em 1891.

O charme do nacionalismo republicano (e a oportunidade), desde logo, ungiu Floriano e, até hoje, sua resposta ao oferecimento de ajuda militar, quando da revolta da Esquadra, faz o brasileiro sorrir. O embaixador de Tio Sam à época quis saber como o Brasil receberia o desembarque de marinheiros americanos para manter a ordem nas ruas do Rio. Floriano, curto e grosso, foi mais ele: “À bala”. Não importa o fato, a versão também faz história por fora. O repique do anti-americanismo se multiplicou na campanha em defesa do petróleo nos anos 50 e, a partir daí, se esgotou praticamente nos anos 60.

A era do “rouba mas faz” exprimiu bom humor e não foi desautorizada por Ademar de Barros, que continuou a se eleger governador de São Paulo. Desde que realizasse obras, governante estava desobrigado de dar explicações ao moralismo ranzinza. A realização de obras públicas capazes de encher os olhos consagrou o sofisma de que a margem de roubo faz parte dos custos. Estão por aí as conseqüências.

O rendimento eleitoral do moralismo teve seu ponto mais alto nas eleições de Jânio Quadros, a prefeito, governador e presidente. Atirou pela janela o mandato presidencial e se defenestrou por erro de cálculo. A volta aos padrões democráticos, depois da última ditadura, pode ter mantido à distância riscos operacionais das liberdades públicas, mas falhou na implantação e na exigência da moralidade administrativa, que pede mais do que discursos de posse. Numa sociedade sem condições de dar conta das necessidades apenas com os meios de que a democracia dispõe, o espetáculo da impunidade merece atenção diferente de tudo que já se viu, e ainda não acabou. Falta o principal.

FONTE: JORNAL DO BRASIL

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