terça-feira, 15 de maio de 2012

"O cinema está vivo e muito bem"

Elaine Guerini

O francês Thierry Frémaux, de 51 anos, passa o ano com os olhos grudados à tela da televisão, onde assiste a cerca de 1.800 DVDs de filmes, vindos de todos os cantos do mundo. Apenas 20 deles chegam à disputa pela prestigiada Palma de Ouro e mais 20 são selecionados para a mostra Un Certain Regard, o que aumenta a pressão sobre os ombros de Frémaux.

Há cinco anos como diretor-geral do Festival de Cannes, posto aprovado na França pelos ministros da Cultura e das Relações Exteriores, é ele quem seleciona os últimos trabalhos de grandes cineastas, descobre novos talentos e, de preferência, aponta os filmes que conquistarão a plateia mundo afora, ao longo do ano.

Foi o que aconteceu com "O Artista", que teve première mundial na Riviera Francesa, nove meses antes de sua recente consagração no Oscar deste ano. "Foi uma aventura maravilhosa iniciarmos a carreira do filme conosco, em maio, e vê-lo continuar dando o que falar até fevereiro do ano seguinte, na cerimônia do Oscar", afirma o diretor.

Neste ano em sua 65ª edição, o maior festival de cinema do mundo começa amanhã, com a exibição do filme "Moonrise Kingdom'', de Wes Anderson. Entre os candidatos à Palma de Ouro estão os novos trabalhos de Michael Haneke ("Amour"), Abbas Kiarostami ("Like Someone in Love"), Ken Loach ("The Angel's Share") e David Cronenberg ("Cosmopolis"). Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que Frémaux concedeu ao Valor.

Valor: Como o sr. chegou à seleção do festival neste ano? Como anda o cinema mundial, principalmente depois da crise financeira, que limitou a oferta de filmes dos EUA e de alguns países europeus nas últimas edições?

Thierry Frémaux: É preciso vários anos para julgar o estado do cinema mundial. Nós não julgamos o vinho de Bordeaux só a partir de uma única colheita. O cinema se mantém misteriosamente poderoso e resistente à "civilização das imagens". Há quem apostasse que o cinema não conseguiria sobreviver ao vídeo e à internet. Mas o ato de fazer um filme continua único. Ainda que um filme precise de dinheiro, a crise não impediu que os artistas continuassem a se reinventar. Obviamente, eu falo como cinéfilo. Por isso digo que o cinema está vivo e muito bem.

Valor: Boa parte dos diretores da competição já disputou a Palma de Ouro. Michael Haneke, Abbas Kiarostami, Ken Loach e Cristian Mungiu ganharam o prêmio, inclusive. É possível dizer que está cada vez mais difícil fazer novas descobertas no cinema?

Frémaux: Não é difícil fazer descobertas, mas precisamos ser muito cautelosos na forma de expor os novos talentos. No ano passado, tivemos filmes de diretores estreantes na competição (como Julia Leigh, com "Beleza Adormecida") e talvez Cannes não tenha sido tão benevolente com eles, enquanto os grandes mestres são sempre muito bem tratados. É por isso que a seleção paralela Un Certain Regard é tão importante para mim. É lá que fazemos anualmente muitas descobertas. É o local certo para a experimentação, onde há mais generosidade na opinião pública cannoise.

Valor: O Brasil estará representado neste ano no Festival de Cannes com Walter Salles, na competição (apesar de seu filme, "Na Estrada", ser uma produção internacional), e com Carlos Diegues, escolhido como o presidente do júri do Caméra d'Or, além de outras participações. Como o sr. avalia o cinema brasileiro atual?

Frémaux: É um cinema de muita vitalidade, mas dividido, como em muitos países do mundo. Há o cinema jovem que ainda precisa se firmar e o cinema comercial difícil de exportar. Nós, em Cannes, amamos o cinema brasileiro, por sua qualidade, sua história e por suas personalidades também. Daí a homenagem ao Brasil neste ano de aniversário, quando chegamos à 65ª edição. Não é por nostalgia. É apenas uma maneira de dizer: o Brasil está aí, ativo, vivo com um belo filme internacional concorrendo à Palma.

Valor: Há uma forte presença americana na competição deste ano - incluindo filmes como "Killing Them Softly", de Andrew Dominik, "Lawless", de John Hillcoat, "Mud", de Jeff Nichols, e "The Paper Boy", de Lee Daniels. É difícil encontrar um equilíbrio?

Frémaux: Este é um ano muito interessante para os EUA. Da minha perspectiva, o cinema americano dos últimos anos foi marcado por uma extrema polarização entre os grandes filmes de estúdio e os pequenos filmes independentes. E exceto por algumas grifes cinematográficas (como os irmãos Coen, Quentin Tarantino, James Gray, Sean Penn, Gus Van Sant, Woody Allen, Terrence Malick etc.), o filme para o público adulto praticamente desapareceu. O momento atual sinaliza um possível retorno do cinema voltado aos espectadores entre 30 e 50 anos. Sendo assim, Cannes não poderia deixar de testemunhar essa nova leva. Claro que ainda é cedo para tirar conclusões. E será preciso que esses filmes deem certo, claro.

Valor: Qual a temática do Festival de Cannes 2012? É possível fazer a seleção sem pensar em linha ou tendência que vai se delineando a partir de suas escolhas?

Frémaux: Para nós, não há nenhuma linha, pois não fazemos o exercício crítico. Uma bela seleção é uma série de bons filmes que reflete o estado do cinema. Seria delicado demais desenhar uma linha editorial, pois teríamos de descartar um filme ou outro em nome de uma tendência pré-estabelecida. Nós estamos a serviço do cinema no movimento do seu tempo. A nossa única "linha", a cada ano, é trazer objetos incomparáveis. Em 2011, "O Artista" retomou os longos planos-sequência, assim como em "Era Uma Vez na Anatólia", de Nuri Bilge Ceylan. Logo de cara, Robert De Niro, que foi presidente do júri, disse: "É maravilhoso o fato de ainda podermos fazer filmes assim".

Valor: O que significou para o Festival de Cannes a consagração de "O Artista" no Oscar?

Frémaux: "O Artista" ajudou tremendamente o Festival de Cannes. Primeiramente, sua presença provou que podemos realmente colocar todos os tipos de filmes em competição. Em segundo lugar, foi a constatação de que não podemos confiar em aparências. Michel Hazanavicius tinha uma imagem de cineasta "comercial e popular" (pelos filmes da franquia "Agente 117", paródia do cinema de espionagem). Mas ele conseguiu provar que é um grande diretor.

Valor: O que o italiano Nanni Moretti (diretor de "Habemus Papam"), escolhido como presidente do júri neste ano, trará à Croisette?

Frémaux: Depois de Isabelle Huppert, presidente em 2009, nós não tivemos mais um nome europeu à frente do júri. Sean Penn foi o presidente em 2008, Tim Burton, em 2010, e Robert De Niro, no ano passado. Nesse cenário, surgiu a ideia de entregar a missão a Moretti, Palma de Ouro em 2001 (meu primeiro festival como diretor artístico). Trata-se de um cineasta, um cinéfilo, um explorador, um produtor, distribuidor, um autor, um homem da política, esportista e um amante da música. Seu gosto musical vai desde o roqueiro Bruce Springsteen até a argentina Mercedes Sosa. Resumindo: é o presidente ideal. Um impetuoso! Sua indicação como presidente foi tremendamente bem acolhida, pois sabemos que os grandes artistas permanecem como referências importantes.

Valor: O que representa para Cannes apresentar o último filme dirigido por Claude Miller (morto aos 70 anos, no mês passado), "Thérèse Desqueyroux", no encerramento, no dia 27?

Frémaux: Primeiramente, o filme de Claude foi escolhido porque é um belo trabalho. Em segundo lugar, num ano em que perdemos tantos cineastas importantes, como Raoul Ruiz e Theo Angelopoulos, é essencial prestar essa homenagem a Claude, que era um grande amigo de Cannes. Ele foi um cineasta muito importante na minha vida, já que "Dites-Lui Que Je l'Aime", uma produção dos anos 1970, com Gérard Depardieu, foi um filme-chave no despertar da minha paixão pelo cinema.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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