domingo, 4 de março de 2012

Moqueca à Crivella :: Alberto Dines

Histórias de pescador são geralmente fantasiosas, mas ao afirmar que sequer sabe enganchar a minhoca no anzol o novo ministro da Pesca, senador Marcelo Crivela (PRB-RJ), não apenas fez uma rara opção pela verdade como escancarou a enganação embutida na criação e manutenção deste Monumento ao Desperdício chamado Secretaria Especial da Pesca.

O herdeiro da Igreja Universal do Reino de Deus, líder da bancada evangélica do Legislativo, completou seu breve convívio com a transparência ao negar que a nova carreira piscatória tenha algo a ver com o esforço do governo federal em reforçar a candidatura de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo. Com isso só confirmou o real objetivo da manobra. No que foi ajudado pelo devoto ministro Gilberto de Carvalho ao declarar que a nomeação do Pescador-Mor “vai facilitar a relação com as igrejas.”

Esta pueril e herética moqueca à Crivella tem o mérito de trazer para a agenda nacional a escamoteada questão do secularismo. O Brasil está retornando rapidamente ao estágio teocrático que vigeu sem interrupções do descobrimento ate a votação da primeira Carta Magna republicana em 1891.

Embora seja pacífico que o nosso atraso em matéria de educação, ciência, cultura e imprensa decorra da prolongada sujeição do Estado à Igreja nada se fez para reverter tão grave deficiência institucional. O Estado de Direito no Brasil é capenga, todos sabem disso. Ninguém tenta reabilitá-lo, tanto na esfera simbólica como administrativa.

Antes do velocíssimo crescimento das seitas evangélicas no Brasil quem ousava contrapor-se à hegemonia da Igreja eram as diferentes confissões luteranas. O general-ditador Ernesto Geisel, único chefe de Estado ostensivamente anticatólico, em 1976, numa das freadas da sua Distensão, aproveitou-se do arsenal autoritário para emplacar de forma solerte o divórcio, o que abalou a Igreja, enfraqueceu sua formidável cruzada em defesa dos direitos humanos e deu à ditadura um amplo apoio popular.

De lá para cá, ditadores e presidentes enfrentaram o poderoso vetor teocrático com a mesma esperteza: contentando de forma equitativa a católicos e protestantes, facilitando seus imensos privilégios, concedendo-lhes o ilegítimo acesso aos meios de comunicação eletrônicos e sepultando nas gavetas qualquer debate que possa nos aproximar do Estado de Direito democrático, secular e isonômico.

Mesmo o Poder Judiciário – teoricamente comprometido com suas prerrogativas e independência – convive no plenário da Suprema Corte com a discrepante exibição da cruz acima das armas da República. Na Espanha, muito mais católica, isto seria um acinte, aqui não chama a atenção dos eleitores, políticos, nem confronta os meritíssimos.

Esta incapacidade de defender o secularismo e a ideia do estado laico manifesta-se com igual intensidade nas hostes do governo e da oposição. PT e PSDB, geneticamente de esquerda, deram um jeito de driblar os respectivos DNAs e não resistem à tentação de comungar e persignar-se em atos oficiais mesmo sabidamente ateus, agnósticos ou céticos. Os confessores de hoje não se importam com ave-marias erradas e padre-nossos incompletos, diferentemente do que acontecia nos tempos da Inquisição.

O vale-tudo infiltrou-se no terreno da fé. Crivella, suas minhocas e peixes é o símbolo de um sincretismo que parece coisa do Diabo.

Alberto Dines é jornalista

FONTE: JORNAL DO COMMERCIO (PE)

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