quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Mais segurança pessoal, menos desigualdade::Fernando Henrique Cardoso

Fernando Henrique Cardoso, entrevista a The Economist online, 19/01/12

Em 12 de janeiro o chefe da nossa sucursal em São Paulo entrevistou Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil de 1995-2002, no Instituto FHC. Eles discutiram os desafios do Brasil e seu poderio global crescente. Você pode clicar abaixo [no site da revista] para ouvir a conversa, ou ler a transcrição completa a seguir.

The Economist: Podemos começar pela maneira como a posição do Brasil no mundo está mudando? O Brasil parece estar tentando criar um novo tipo de poder mundial – um “soft power”.

Cardoso: No século passado a economia do Brasil cresceu muito consistentemente até 1980. Só o Japão cresceu mais depressa em termos per-capita. Daí em diante o Brasil tem sempre procurado novos papéis. Na cabeça do povo brasileiro, somos um gigante. Mas nosso tamanho, por muito tempo, foi uma ilusão. Nós ainda não temos capacidade de desempenhar um papel importante. Ficamos o tempo todo imaginando o que poderíamos vir a ser.

O Brasil aspirava ser parte do grupo central da Liga das Nações; depois da Segunda Guerra Mundial o Brasil levantou essa possibilidade de novo [durante a criação das Nações Unidas]. Churchill vetou, dizendo que as Américas não poderiam falar com duas vozes. Churchill errou. Assim, nós sempre aspiramos a um papel importante.

No século XIX, por causa do confronto entre Espanha e Portugal, nós nos envolvemos em guerras no Sul, e o império brasileiro foi percebido por nossos vizinhos como uma ameaça. Depois o eixo deslocou-se para os Estdos Unidos e o Brasil virou uma República e muito mais acomodado – e novamente hesitou. Até que ponto deveríamos desempenhar um papel hegemônico na região? Nunca assumimos esse papel. Preferimos ser amados a ser temidos.

No fim do século passado, a economia recuperou o vigor, estabelecemos tradições democráticas e redescobrimos nossas peculiaridades culturais. Isso nos deu uma sensação de que talvez pudéssemos desempenhar um papel na área da “soft politics”: não apenas por sermos economicamente fortes, mas também por causa da nossa capacidade de aceitar os outros, de sermos tolerantes. Nós gostamos de nos considerar sem preconceitos, como uma democracia racial. Não é inteiramente verdade, mas é uma aspiração com alguns ingredientes de realidade. Porque de fato nós somos mais tolerantes do que vários outros países.

Compare os Estados Unidos e o Brasil. Ambos são países construídos com base na imigração, nas no Brasil os imigrantes se integraram mais, e o que é mais impressionante é que as culturas se fundiram. Não temos uma cultura negra no Brasil, e uma cultura branca. Não tem sentido no Brasil falar de cultura negra: ela é a nossa cultura.

E nós aceitamos a variedade religiosa. Não somos intolerantes – os brasileiros são sincretistas, não fundamentalistas. E porque somos um país de imigrantes, temos contato com diferentes partes do mundo. Muitos brasileiros são japoneses e talvez mais de 10 milhões são árabes. Mais que isso são alemães. Não há outro país no mundo com mais italianos, em números absolutos. E tudo isso se fundiu. Nós nunca sabemos exatamente qual é nossa ascendência.

O Brasil sempre foi a favor do multilateralismo, em vez de relações bilaterais, e de tentar negociar, lançar pontes. A diplomacia brasileira se baseia nisso. Nós precisamos olhar para o Sul, para a bacia do Rio da Prata, e para os Estados Unidos; relacionarmo-nos tanto com os Estados Unidos quanto com o Sul.

Há elementos de flexibilidade na cultura brasileira que têm origem em Portugal, não só no Brasil. Se você comparar os portugueses e os holandeses na África, é bem diferente. Os portugueses sempre tiveram relações sexuais com os nativos.Há uma frase que eu gosto de repetir quando estou na Espanha. No século XVIII, o Marques de Pombal [Sebastião José de Carvalho e Melo, o primeiro ministro do Reino de 1750 a 1777] escreveu uma carta para seu irmão, o vice-rei do Norte do Brasil, dizendo: temos que estimular os portugueses a se casar com mulheres indígenas, porque é melhor ter meio português do que um espanhol! Eles estavam enfrentando os espanhóis e se preocupavam com a questão demográfica. Sentiam que essas crianças eram, de algum modo, portuguesas. Isso não é comum no mundo hispânico, eles se mantinham mais separados.

Então, no Brasil, a classe dominante em geral tentava disfarçar o fato de que a desigualdade era tão grande. Uma das maneiras de disfarçar as diferenças é tratar as pessoas como se elas fossem mais próximas do que realmente são, falar como se fôssemos iguais. Até certo ponto, isso é um engodo, mesmo que as pessoas não se dêem conta; é uma maneira de manter as diferenças sem provocar uma reação forte. A parte tradicional da classe dominante no Brasil será sempre amena, gentil, pedindo sempre “por favor”, em vez de mandar. Com a nova burguesia não é assim: eles são muito mais arrogantes do que os grupos da elite tradicional do Brasil. São diferentes – mais capitalistas.

The Economist: Vamos falar das mudanças sociais. O Brasil mudou muito nos últimos anos.

Cardoso: O divisor de águas foi a nova Constituição. O começo foi a luta contra o regime militar e as greves. A nova Constituição foi o batismo de uma nova sociedade.

The Economist: Ainda está mudando. Esta República é jovem; a Constituição foi escrita apenas em 1988. Vocês ainda estão ajustando suas instituições. Você participou do processo de construção de instituições, possivelmente o mais importante agente desse processo.

Cardoso: O sentido institucional sempre foi muito presente no Brasil, em comparação com outras partes do Novo Mundo. A monarquia portuguesa era estável, e somos herdeiros da coroa portuguesa. Todas as instituições chegaram aqui com o rei de Portugal e o Rio [de Janeiro] tornou-se a capital do Império português. Ao mesmo tempo, esta é uma sociedade altamente desorganizada! É difícil combinar estes fatos: que temos instituições e ao mesmo tempo estamos sempre dispostos a desobedecê-las. É a flexibilidade – o “jeitinho”. Isso é bom e ruim. Em certos aspectos nossa legislação é ótima mas a prática é um desastre. Por exemplo, temos regras muito estritas sobre a conduta dos funcionários públicos e políticos, e sobre o dinheiro público. E apesar disso a corrupção está aí.

The Economist: A corrupção está aumentando?

Cardoso: Sempre tivemos algum grau de corrupção, aqui e ali, mas o sistema não era corrupto. Agora o sistema permite a corrupção como um ingrediente normal. Todos sabem que quando você organiza um governo você tem que partilhar poder com os partidos. Mas você não está partilhando poder, você está partilhando oportunidades de ter bons contratos.

The Economist: Não foi esse o caso para você?

Cardoso: Não, não, não. Talvez num ou outro caso, mas agora o sistema inteiro está baseado nisso. Isto é novo. É uma evolução muito ruim. Na cultura política, a flexibilidade tornou-se, não flexibilidade, mas tolerância com o crime. Você tem instituições, tem tribunais, mas ninguém está na cadeia.

The Economist: Você vê algum sinal de movimento por mudanças na sociedade?

Cardoso: Alguns indivíduos têm muita raiva. O ponto é que, nos últimos 15 anos, a sensação de bem-estar tem sido tão óbvia, e melhora a cada ano. A população talvez saiba que há alguma coisa errada, mas fica nisso. Não agem contra, não protestam. Algumas pessoas, sim, a “velha” classe média.

The Economist: Agora o Brasil tem duas classes médias.

Cardoso: A nova classe média talvez venha a protestar no futuro, porque ela não e um produto da corrupção, mas dos mercados. Ela está ascendendo na escala social pelo trabalho, por seu próprio esforço. Então eu espero que com o tempo ela reaja. Mas isso vai depender da situação geral. Porque hoje ninguém se importa. As pessoas, são contra a corrupção, aqui e ali, mas não se mobilizam, porque a situação esta ok, elas estão ascendendo.

The Economist: Essas pessoas são eleitores naturais do PSDB? Pessoas que estão trabalhando duro e querem manter o que é seu, em outros países votam em partidos que economicamente são de centro-direita. (Nota: o PSDB, ou Partido da Social Democracia Brasileira, foi fundado por Cardoso e outros no bojo do movimento de oposição à ditadura militar, em 1988. O PT, ou Partido dos Trabalhadores, ao qual pertencem a atual presidente, Dilma Rousseff, e o presidente anterior, Luiz Inácio Lula da Silva, foi fundado mais ou menos na mesma época.)

Cardoso: Mas não há sentido de esquerda e direita no Brasil. É estranho. Não temos uma direita no Brasil. O PSDB começou de centro-esquerda e agora na prática é de centro. Mas o que isso significa?

Qual a diferença entre o PSDB e o PT? No começo era muito claro. O PT tinha muito mais ligação com os sindicatos, era muito mais próximo a setores da igreja e tinha uma vaga ideia de socialismo – não socialismo tradicional, não comunismo, mas socialismo no sentido de que não apostavam no estado para mudar a sociedade, mas, ao contrário, que a sociedade civil mudaria o estado. O PSDB sempre foi mais próximo da classe média do que dos sindicatos e nunca teve uma aspiração socialista tão nítida. Era mais social-democrático que socialista, mas, de novo, apoiava a ideia de que o importante não era expandir apenas o estado mas criar sociedade civil.

Agora creio que o PT descartou a sociedade civil. Ele acreditam no partido e no estado.

The Economist: Qual o papel da oposição num país onde o governo é tão grande? Dentro do governo está todo mundo, dos comunistas à direita, passando pelos latifundiários. Não há ideologia.

Cardoso: Isto é uma certa confusão, mais acentuada sob Lula, porque Lula virou o pai dos pobres – e dos ricos também. Em nome da governabilidade. Lula nunca teve um sentido de luta de classes, apesar de ser um líder sindical. Para ele o importante é negociar. Negociação, mais o enorme ímpeto vindo dos mercado, significou que não há mais diferença entre direita e esquerda.

Sob o regime autoritário tivemos uma direita mais nítida porque havia uma esquerda mais nítida, por causa da Guerra Fria. Com o fim da Guerra Fria e o enorme progresso econômico do Brasil, os grupos mais direitistas no Brasil não são mais direitistas, são conservadores. Em certo sentido, são clientelistas: gostam de estar junto do governo. Se você observar a composição do Congresso, vai ver as mesmas pessoas apoiando [José] Sarney, [Fernando] Collor, [Itamar] Franco, eu mesmo, depois Lula [Luis Inácio Lula da Silva] e agra Dilma [Rousseff]. Não quero pegar um nome específico, mas, só para dar um exemplo, um amigo meu, ministro de Minas e Energia, foi parte disso tudo. Sarney é a mesma coisa: ele foi chefe do grupo do Congresso que apoiou o regime militar e está no governo até hoje.

The Economist: O que faz a oposição não sistema como esse?

Cardoso: Hoje a oposição está numa espécie de armadilha. Nossos partidos tornaram-se cada vez mais partidos congressuais. A oposição é muito ativa no Congresso, faz discursos, protesta, quer organizar uma CPI, uma audiência. E para o povo isso não é nada. A sociedade simplesmente não liga para o Congresso. Os partidos não têm contato com a sociedade. O PSDB tem sido forte em São Paulo há muito tempo, sim, mas a população presta atenção no Executivo, não no Legislativo. Na cabeça dos brasileiros não há contradição entre votar em Lula para presidente e no PSDB para governador do estado.

Contudo, você pode encontrar elementos de racionalidade. Se for ver onde o PSDB é mais forte do que o PT, a tendência é clara: é nas partes do Brasil que são mais desenvolvidas economicamente, mas orientadas para o mercado, ou seja, no meio da “nova classe média”. Não era assim, porque o PT era muito forte nas classes populares urbanas em São Paulo. Mas o PT foi perdendo terreno em São Paulo e se fortalecendo no Nordeste do Brasil, onde em alguma medida substituiu os velhos partidos clientelistas, porque agora é o PT a chave para o dinheiro público.

Isto não é absoluto: há governadores do PT no Sul e governadores do PSDB no Nordeste. Mas se olhar no nível das prefeituras o PSDB está principalmente nas partes economicamente mais progressistas do Brasil: áreas onde o mercado é mais forte e as pessoas são menos dependentes do governo.

Se o PT está no governo, ele consegue todos os aliados em Brasília [onde está baseado o Congresso brasileiro]. Por isso é tão difícil entender isso numa perspectiva européia. Em alguma medida, mas não exatamente, nossos partidos são mais parecidos com os americanos – uma espécie de máquina de produzir votos. Mas nós com certeza não temos o espectro ideológico que você tem na Europa.

The Economist: Na Europa os partidos de esquerda conseguiram achar um novo papel para si mesmos desde o fim da Guerra Fria: algo como justiça, ou equidade, ou aparar as arestas do mercado. Suponho que hoje no Brasil não existe a sensação de que o mercado tem arestas tão duras!

Cardoso: Se eu penso numa oposição mais forte no Brasil, ela provavelmente se baseará em ideias não-econômicas: justiça, segurança pessoa; republicanismo em contraposição à corrupção; respeito pela lei; qualidade de vida.

Se você olha a vida cotidiana, o que está ganhando espaço no Brasil é o mercado. O governo é muito forte e importante, mas o espírito do mercado também está permeando o governo. Veja, por exemplo, a Petrobras ou o Banco do Brasil: eles atuam como empresas privadas.

É importante enfatizar que o espírito de empresa tmbém está ganhando espaço no Brasil. Veja o sistema bancário. Ele se baseava em emprestar dinheiro para o governo a juros muito altos. Mas agora estamos chegando num ponto em que não dá para sustentar esses juros altos, de modo que os bancos terão de se adaptar. O acesso a banco era muito restrito no Brasil; agora está se expandindo. A ideia de crédito é muito nova porque com a inflação isso era impossível.

Em comparação com alguns outros países latino-americanos o sistema bancário no Brasil tem certas vantagens. Temos um sistema financeiro misto, 50% estatal, 25% controlado por famílias brasileiras e 25% por bancos internacionais. Então e altamente diversificado. Segundo, a dívida interna está nas mãos de brasileiros. Sempre tivemos um sistema financeiro enraizado na sociedade brasileira.

Seria impossível fazer aqui o que foi feito na Argentina. O dólar nunca foi nossa moeda, ao contrário da Argentina. Ao logo de todo o período inflacionário nossa poupança se manteve em moeda local, porque tínhamos um sistema de indexação para ajustá-la. Nunca tivemos “currency board”. Eu mesmo tive uma tremenda discussão com o FMI na crise de 1999 [quando o custo do financiamento da dívida pública brasileira de um pulo e o país acabou desvalorizando sua moeda]. [Stanley] Fischer, que hoje é presidente do Banco Central de Israel, disse: Vocês têm que fazer o que a Argentina fez. Nós resistimos. Nunca aceitamos amarrar nossa moeda ao dólar, porque sabíamos da importância de podermos desvalorizar nossa moeda, por causa das nossas exportações. Na Argentina, mesmo hoje, estão mandando dinheiro para o exterior. Não temos esse problema: temos um sistema financeiro muito forte e a poupança está em moeda nacional.

The Economist: Agora está entrando dinheiro e há o problema oposto: o real está incrivelmente forte.

Cardoso: É um problemão. Agora não temos alternativa a não ser aumentar a produtividade. Mas o problema com a produtividade agora não está dentro das empresas, está fora. É o governo; são as estradas; é a tributação. O que tem que ser feito é uma longa história, mas o governo precisa racionalizar, fazer algumas reformas. Algumas são muito difíceis de realizar – como a reforma tributária – mas são necessárias. Veja a carga tributária: subiu a mais de 36% do PIB. Nosso PIB hoje é mais de US$2 trilhões. Trinta e seis por cento de US$2 trilhões e muito dinheiro. Mas o governo está expandindo a burocracia; super-expandindo sem levar em conta a necessidade de renovar a infraestrutura e se concentrar na educação. A população vai reagir contra ainda mais aumento de impostos. Isto tem que forçar o governo a ser muito mais racional no uso desse dinheiro.

The Economist: Você vê algum sinal disso acontecer?

Cardoso: Não sei… Talvez por causa da presidente Dilma Rousseff. Ela é muito mais aberta para entender os números.

The Economist: Você tem uma relação muito interessante com a presidente. Vocês dois parecem ter criado um novo relacionamento entre ex-presidente e presidente.

Cardoso: Porque Lula perdeu a oportunidade de fazer isso. Eu tinha uma relação pessoal antiga com Lula. Fomos muito próximos. Ele passou férias na minha casa de praia com sua família. Mas não tivemos relação institucional, porque essa foi a decisão do PT. Mas isso foi por causa da política eleitoral. Dilma é diferente. Ela não tem ligação pessoal comigo, é um relacionamento muito mais superficial do que foi com Lula. Talvez ela ainda não se veja – pelo menos até agora – como candidata, de modo que ela não encara outras pessoas como inimigos. Não sei, mas ela tem sido sempre muito correta comigo.

Por coincidência, tive um sonho na noita passada, em que nós – Lula e eu – propunhamos juntos um consenso nacional. [risos] É tão óbvio que o Brasil precisa se concentrar em algumas coisas fundamentais. Que fazer com a energia? Que fazer com a educação? Como criar melhores oportunidades para nossa infraestrutura, com o governo e o setor privado trabalhando juntos? Como chegar a um consenso sobre o meio ambiente? É tão óbvio. Essas não são questões partidárias, mas nacionais.

The Economist: Consensos nacional tende a acontecer em tempos de crise…

Cardoso: É por isso que não acontece. Por outro lado, há uma espécie de acordo não-explícito. Quando Lula assumiu a presidência o mundo acreditou que ele destruiria tudo o que eu tinha feito. E ele não destruiu – sem ser explícito. Quando eu vivi no Chile [durante o período da ditadura militar no Brasil] os democratas-cristão e socialistas eram adversários, os socialistas muito mais à esquerda e os democratas-cristãos muito mais conservadores. Depois eles convergiram para criar uma força unida, a Concertación. Nós não fizemos assim. Mas na prática estamos fazendo a mesma coisa, em alguma medida. O discurso eleitoral é diferente, claro, porque você tem que sinalizar que é diferente. Mas na prática não é – o que dificulta a oposição.

The Economist: Sobre o tema da oposição, vou dizer francamente que achei a campanha do PSDB para presidente em 2010 muito fraca. O partido vai ser mais combativo e 2014 e apresentar um candidato em torno do qual possa se unir? Ele tem uma estratégia clara? Ou vai apenas brigar internamente e rachar?

Cardoso: Na última campanha o PSDB teve equívocos enormes. No começo o favorito era nosso candidato ]José Serra], disparado. E em vez de organizar alianças – porque é mais fácil criar alianças quando se está por cima, porque os partidos querem estar junto com o vencedor, como eu disse antes – nós não fizemos isso. Nosso candidato ficou isolado, até internamente.

The Economist: Ficou isolado ou isolou-se? Ele afastou os outros?

Cardoso: Sim. E isso foi muito ruim. E apesar disso, Dilma foi para o segundo turno. E Serra teve 44%.

The Economist: Só 44% contra alguém que nunca tinha sido cogitada para presidente antes…

Cardoso: Com Lula por trás. Seja como for, o que estou tentando dizer é que seria possível ganhar. Foi falha nossa.

The Economist: Com o mesmo candidato?

Cardoso: Bem… talvez não.

The Economist: Como o PSDB vai se unir ao redor de um candidato?

Cardoso: Tem que buscar a unidade interna. Eu diria que agora o PSDB está mais consciente da necessidade de se unir. Não é simples, porque o senso de coesão baseada em valores é menos forte que no passado. É mais uma questão de personalidades agora. E o mesmo se aplica ao outro lado. A última campanha deles foi nada, zero; as questões reais nunca foram levantadas. Foi um simulacro de campanha, com marqueteiros desempenhando o papel de atores principais, em vez de serem submetidos a alguma liderança.

Agora há vários pontos de interrogação. Qual será o papel de Lula? Eu diria que ninguém sabe, nem ele mesmo. Por causa da sua saúde [Lula tem câncer na garganta, com um bom prognóstico], mas não só por isso. Diria que normalmente Lula tentaria concorrer: ee é um animal muito competitivo, um animal político. E provavelmente a presidente Dilma não tem respaldo interno [em seu partido e nos parceiros de coalizão]. Se ele também tiver a mesma aspiração – não tenho certeza – será difícil para ela. Uma coisa é concorrer com Lula, outra é concorrer com outra pessoa, mesmo a presidente Dilma.

No caso do PSDB, o ex-governador Serra desempenha o papel de Lula: ele tem fibra, gosta de competir. Não sei até que ponto ele estará mais convencido que não é a vez dele, para dar espaço a outros.

The Economist: Quem seria o candidato óbvio?

Cardoso: Aécio Neves.

The Economist: Aécio pode ganhar?

Cardoso: Aécio é de uma cultura política brasileira mais tradicional, mais capaz de estabelecer alianças. Ele tem apoio em Minas Gerais [seu estado]. São Paulo não é assim, sempre se divide, é muito grande. As coisas vão ficar mais claras depois das eleições municipais [em outubro de 2012]. Provavelmente vamos ver uma forte luta interna no PSDB, entre Serra e Aécio.

The Economist: Geraldo Alckmin [atual governador de São Paulo e candidato presidencial do PSDB em 2006] também está no jogo?

Cardoso: Não, eu acho que não.

Tenho alguma responsabilidade no caso do PSDB. Para botar as cartas na mesa, meu sucessor natural morrer, um ex-governador de São Paulo, Mario Covas. Eu fui presidente por oito anos, fiz parte do governo antes disso, e estava com 71 anos. Já chegava. Decidi que era hora de abrir espaço para outros, não só por generosidade, mas também porque estava cansado de exercer a liderança política. E Covas morreu. Assim, nenhum líder inconteste me substituiu. Foi uma tensão permanente entre três ou quatro possíveis candidatos, e no fim Serra saiu candidato, mas sem convencer os outros que ele era realmente o homem. E agora de novo não está claro. No caso do PT foi diferente porque Lula nunca se afastou da luta, e impôs Dilma. Vamos precisar de algum tempo para reorganizar a hierarquia da liderança. E é muito tarde para mim – estou com 80 anos – para aspirar isso.

The Economist: Você ainda é uma das vozes mais importantes dentro do seu partido.

Cardoso: Certo, mas não por minha causa, e sim por falta de outros! Acho que isso é ruim para o Brasil. E o mesmo se aplica ao outro lado: é só Lula. Deixe-me dizer de modo impessoal: nos últimos 20 anos, só dois líderes. Não é saudável para um país, um país grande. Eu tomei minha decisão: abrir espaço. Esse espaço ainda está aberto.

Temos algumas pessoas de uma nova geração. Depois da minha geração há Serra e o ex-governador do Ceará, Tasso Jereissati. Depois vem Aécio; o governador do Pará, Simão Jatene; o governador de Goiás, Marconi Perillo. Olhando objetivamente, há outo governador, do Partido Socialista, Eduardo Campos, de Pernambuco, que poderia virar líder – ele tem algumas das características. Ele poderia ser capaz, mas ainda não. É uma possibilidade.

Então, há possibilidade. É uma questão de tempo. Provavelmente se Lula não se envolver – o mesmo vale para mim – seria melhor. Para deixar acontecer naturalmente.

The Economist: Desde que deixou a Presidencia, você tem falado publicamente de vários assuntos delicados, notadamente a futilidade da guerra às drogas e a necessidade de tratar o abuso de drogas como um assunto de saúde pública, não criminal.

Cardoso: No meu livro mais recente, “A soma e o resto”, falo francamente sobre vários assuntos, sem levar em conta que sou um ex-professor de sociologia e ex-presidente. Falo como uma pessoa. É difícil, mas em todo caso eu tentei. Incluí o que eu penso sobre drogas. É hora daqueles que realizaram alguma coisa tomar a palavra, porque o que está minando o prestígio dos políticos na sociedade é que os políticos preferem não assumir posições. Porque causa problemas. Porque às vezes o custo de ser franco é muito alto.

No livro eu falo de coisas menos comuns, como a minha espiritualidade, por exemplo, porque nos bastidores as pessoas sempre discutiram até que ponto eu sou ou não uma pessoa de fé. Também sobre o que penso da abordagem tradicional da vida política: o sistema partidário. Ele está completamente ultrapassado com você tem novas formas de conexão, como a internet. Na minha cabeça não está claro o que pode ser feito pelas mídias sociais, internet, smartphones e assim por diante. Que eles podem mobilizar as pessoas está bem claro, estão fazendo isso. Mas, assim sendo, como se conectar com as instituições políticas? Creio que este é um ponto de interrogação para o mundo todo.

Tradução: Eduardo Graeff

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