domingo, 2 de janeiro de 2011

Reflexão do dia - Antonio Gramsci

É no mínimo estranha a atitude do economicismo em relação às expressões de vontade, de ação e de iniciativa política e intelectual, como se estas não fossem uma emanação orgânica de necessidades econômicas, ou melhor, a única expressão eficiente da economia; assim, é incongruente a formulação concreta da questão hegemônica seja interpretada como um fato que subordina o grupo hegemônico. O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. vol. 3. p. 48.

Intelectuais e poder :: Roberto Romano

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Quem se importa, hoje, com indivíduos e grupos "intelectuais"? No pretérito, escritores, filósofos ou cientistas eram combatidos, aceitos ou silenciados pelos regimes políticos, igrejas, patrões ou operários. É imenso o rol dos pensadores, de Erasmo a Bertrand Russell, envolvidos em problemas humanos candentes. No século 20, manifestos assinados por acadêmicos valiam programas políticos e competiam com encíclicas. Daí a estranheza escandalizada quando os "grandes nomes" silenciavam em situações de injustiça, como nas tiranias de esquerda ou direita.

O totalitarismo domou intelectuais famosos e fez do seu discurso propaganda ou hipocrisia. O realismo enfraquece a mente mais brilhante, nela obnubila o sentido ético e moral. No Brasil, O Pasquim criou o slogan exato para quem seguiu a ditadura: "Eu preciso sobreviver, entende?" O periódico espelha a reflexão de Elias Canetti em Massa e Poder. O Prêmio Nobel comenta a conivência entre autores e governo. O poderoso e seus áulicos preferem guardar a própria vida, em detrimento dos outros seres humanos. Para eles não existem família, amizade, partido ou formas religiosas, tudo o que fazem tem por alvo alongar a sua permanência na ordem pública, vampirizando todos ao seu redor.

Certeira analogia é feita por Canetti entre poderosos e intelectuais maníacos da glória. Para eles, as demais criaturas "não têm outra razão de viver senão a de pronunciar um nome muito determinado (...). As diferenças entre o rico, o detentor do poder e o famoso podem ser resumidas mais ou menos assim: o rico coleciona montes e rebanhos. No lugar destas coisas está o dinheiro. Os homens não lhe interessam; para ele é suficiente o fato de poder comprá-los. O detentor do poder coleciona homens. Os montes e os rebanhos nada significam para ele, a não ser que necessite deles para a aquisição de homens. Mas ele deseja homens que vivam, para arrastá-los ou para levá-los consigo à morte. (...) O famoso coleciona coros. Destes quer escutar apenas o seu nome. Eles podem estar mortos ou vivos, ou podem nem ter nascido ainda; tudo isto lhe é indiferente. Basta que sejam numerosos e tenham sido exercitados em repetir seu nome".

O poderoso que busca a sobrevida e o intelectual sedento de fama podem empreender boas e belas coisas: surgem os estadistas e os escritores imortais, que, segundo Canetti, alimentam a humanidade. A maioria dos governantes e acadêmicos, no entanto, é bem representada por líderes como Vargas e Sarney (ambos da Academia e, portanto, imortais...), beneficiários da censura imposta aos seres comuns.

Intelectuais do século 20 levantaram-se contra tiranias, mas também serviram aos poderosos, pouco importa a cor do príncipe, se parda ou rubra. "Não são aplausos que faltam aos intelectuais, mas sim votos aos partidos que eles apoiam (...). Uma coisa é formar o discurso político, outra é ter poder sobre a vida pública" (Gerard Lebrun, Quem Tem Medo dos Intelectuais?). Após a 2.ª Guerra, muitos intelectuais aceitaram viseiras (políticas, religiosas, econômicas), tentando colocar idênticos tampões na opinião pública. Imaginar "bons" escritores em luta contra "bandidos" (na direita ou na esquerda) é lenda que impede entender o reino animal do espírito, nome dado por Hegel à "comunidade" dos cerebrinos.

No Brasil de agora, emudecem os que parolavam sobre ética e serviço ao povo.

As bases militantes acusam suas direções, escondendo de si mesmas o fato de que os dirigentes não agiriam com desenvoltura se tivessem recebido críticas... dos intelectuais. O "bom acadêmico" (como o bom selvagem) contenta-se com penduricalhos (uma assessoria ou cargo honorífico), mas recolhe as ordens dos superiores e as justifica para o público.

Boa parte dos universitários fica de joelhos e usa truques para não atacar a falsa República brasileira. Fingem não ler péssimas notícias, ignoram o privilégio de foro, os lobbies informais, os caixas 2, as pressões corruptas no Estado e na sociedade. Eles antes falavam demais porque, ainda citando Lebrun, "a crítica das instituições e dos privilégios sempre terá mais atrativo do que a banal apologia da ordem estabelecida". Seu vício anabolizante se encontrava na denúncia. Como não podem mais desmascarar, humilhar, destruir inimigos de seus partidos e devem preservar, blindar, adular a própria grei, eles se ocultam no tíbio silêncio. Se os abusos dos três Poderes são gritantes, o dever manda apontar ao público o que se passa nos gabinetes, mesmo à custa de processos judiciais, prisões, exílios, solidão. Quando Voltaire denunciou o caso Calas, não recebeu apoio da sociedade. Ao escrever o tremendo Eu Acuso, Zola não se tornou popular. No tribunal sobre o Vietnã, Sartre e Bertrand Russell recolheram apupos.

Os intelectuais arvoravam mentirosa independência política. Hoje, o seu máximo empenho é assinar listas de apoio eleitoral ou em defesa própria.

Muitos deles passaram oito anos criticando à socapa o governo Lula e, na bacia das almas, assinaram manifestos em favor de sua candidata. Na outra margem, muitos se acomodaram, deixando o candidato oposicionista à deriva.

Eles precisam sobreviver, entende? Bolsas de estudos, recursos de pesquisa, publicação de livros e artigos justificam as zumbaias dos famosos (outros nem tanto) dirigidas aos governantes. Seguir exércitos fortes, no Brasil, traz popularidade, verbas e verbo. É o tempo das vivandeiras, agora no reino do espírito. Os "intelectuais orgânicos", no Brasil e no mundo, mostram para que servem: universalizam slogans em favor dos palácios. Eles são apenas a caricatura piorada de Glauco e Trasímaco.

Filósofo, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é autor, entre outros livros, de ‘O caldeirão de medeia’ (Perspectiva)

Mulher no poder:: Míriam Leitão

DEU EM O GLOBO

Até agora foi evento histórico, minoria estatística, exceção à regra, casos que se contam nos dedos. Mas ao longo das próximas décadas, o processo vai se intensificar e mulher no poder será natural, parte da paisagem. Estamos nos anos 10 do século XXI. A última mulher a nos governar foi nos anos 80 do século XIX. Foi uma longa espera. Nunca mais haverá um intervalo tão longo.

Os homens monopolizaram a presidência durante toda a República e mulheres presidentes foram casos esporádicos em qualquer país, apesar de a figura que representa a República Francesa ser Marianne. O símbolo era feminino como enfeite, à moda dos ícones de liberdade na História antiga. Nunca mais será mera ilustração, não porque temos pela primeira vez uma presidente no Brasil, mas porque assim caminha a humanidade. Estamos no meio da estrada, há sinais espantosos de atrasos, há eventos estimulantes, mas a escolha do rumo já foi feita. Este será o século do desembarque das mulheres no poder político, como o último foi o do avanço sobre o mercado de trabalho.

Nos anos 1940, as mulheres foram convocadas para as fábricas na falta de homens, que tinham ido para a guerra. Os cartazes da campanha americana mostravam uma operária e a frase: "Nós podemos fazer isso". Ao fim da guerra, foram mandadas de volta ao lar. Como na Revolução Francesa, tinham sido convocadas ao combate e depois, descartadas. A Liberdade, Igualdade, Fraternidade valia apenas para os franceses. Elas só puderam votar em 1945. Mas as americanas do pós-guerra não voltaram ao papel antigo. No ano passado, representaram metade do mercado de trabalho. A revista "Economist" recuperou a figura da mulher operária da campanha da época da guerra, e fez uma capa histórica: "Nós conseguimos".

Era 25 de maio de 1871 quando uma mulher ajoelhou-se diante do Senado e assumiu a regência do Brasil. Parecia apenas o cumprimento da regra imperial, mas Pedro II teve que enfrentar resistência para entregar a coroa à filha, conta o historiador José Murillo de Carvalho num programa que fiz na Globonews (pode ser visto no blog www.miriamleitao.com). Era um momento tenso. O Imperador patrocinara o envio da proposta de Lei do Ventre Livre e, nos clubes das lavouras e no Parlamento, as elites escravocratas resistiam. Muita gente achou uma imprudência, até porque, aos 24 anos, a princesa Isabel nunca tinha mostrado a mesma vocação para o poder que a bisavó Carlota Joaquina, nem mesmo a da avó Leopoldina que, nos bastidores, tinha participado da Independência.

A princesa regente assumiu o poder duas outras vezes e acabou governando mais de três anos, quase um mandato presidencial. Na terceira e decisiva regência, entrou para a História. O país estava dividido e ela escolheu o lado certo, isso é o mais relevante. Participou ativamente das negociações que levaram à Abolição. Afastou, por outros motivos, um dos grandes obstáculos à Lei Áurea, o Barão de Cotegipe da presidência do conselho de ministros e nomeou João Alfredo, simpático à libertação dos escravos. Que ela conspirava contra a ordem escravocrata se sabia no Palácio, onde seus filhos editavam um jornal abolicionista, considerado subversivo pelos donos de escravos. Naquele distante 1888, foi a última vez que uma mulher governou o Brasil, até o dia de ontem, quando Dilma Rousseff assumiu a presidência.

O que isso significa? Se nada significasse já seria o fim de um monopólio. Mas as batedoras mulheres, o aumento da presença feminina no Ministério são pequenos sinais de que os próximos quatro anos poderão mostrar novos avanços.

Já se pode dizer que não serão suficientes porque o Brasil está muito atrasado. Num ranking feito pelo demógrafo José Eustáquio Diniz Alves com outros pesquisadores, o Brasil está em 110º lugar em presença de mulher no Parlamento com magérrimos 8,8% de parlamentares mulheres. Isso, 77 anos depois de ter tomado posse a primeira deputada federal brasileira, Carlota Pereira Queiroz. Bertha Lutz, grande líder sufragista não se elegeu, ficou como suplente e nunca assumiu, porque depois veio o Estado Novo, no qual ninguém votava, nem era votado, seja homem ou mulher.

No mercado de trabalho, a brasileira já é 44% da População Economicamente Ativa, mas ganha menos e ainda ocupa apenas 14% dos cargos de direção das 500 maiores empresas brasileiras, mesmo assim, mulheres executivas ou empreendedoras começam a fazer parte da paisagem empresarial brasileira.

A jornalista Ana Arruda Callado acha que até hoje os homens não se sentem confortáveis em serem chefiados por mulher. Que se acostumem, não haverá volta. A escritora Rosiska Darcy reclama que se fala da mulher apenas no espaço público, e que a forma certa de olhar é valorizando-se a vida privada. Para ela, fora ou dentro do mercado de trabalho, a mulher tem sido a grande responsável por humanizar a humanidade, ou seja, transformar o recém-nascido, que ela define como "um bichinho", no ser socializado que é levado à escola.

Ana Arruda completa o raciocínio, dizendo que os homens precisam entrar no movimento feminista, e aprender não só a dividir o trabalho, mas dividir a vida. Alguns já entenderam isso, felizmente. Chieko Aoki, do Grupo de Mulheres Líderes, lembra que há dez anos dava palestras para grupos de executivos formados quase só por homens, hoje, há reuniões em que a maioria é mulher.

Avanços há, basta olhar em volta. Mas os atrasos a serem vencidos também são visíveis. O que as mulheres querem é só a igualdade.

Amplo, geral e restrito:: Dora Kramer

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Discursos de posse podem ser meramente cerimoniosos ou podem servir para que o estreante imprima sua marca pessoal, lance uma ideia, provoque algum impacto, potencialize a expectativa gerada pelo início de um novo governo.

A presidente Dilma Rousseff ficou com a primeira hipótese. Referiu-se à ousadia do brasileiro em eleger a primeira mulher depois de ter levado o primeiro operário à Presidência do Brasil, mas não retribuiu esse arrojo em seu pronunciamento perante o Congresso Nacional.

Ficou na generalidade, falou de tudo um pouco, até onde deu para perceber não deixou de citar nenhum assunto: reformas política e tributária, crescimento, estabilidade econômica, agricultura, exportação, industrialização, investimento público, melhoria da qualidade do gasto público, ciência, tecnologia, meio ambiente, programas sociais, erradicação da miséria, segurança, saúde, educação, política externa, pré-sal, liberdades democráticas, cultura e combate à corrupção.

Um cardápio amplo, genérico e restrito aos temas mais óbvios. Um discurso correto, mas sem peculiaridade alguma que nos permitisse enxergar para além da formalidade. Dilma discursou na condição de presidente mais ou menos como se conduziu como candidata e depois se comportou na composição do ministério: sem resplandecência, como quem cumpre um dever.

Se vier a cumpri-lo com correção e levando em conta os valores que mencionou em um dos únicos momentos menos burocráticos do discurso, já será um avanço. Dilma prometeu se reger por princípios como justiça social, criatividade, conhecimento e moralidade, os dois últimos bastante desprezados nos últimos anos.

A presidente teve também outros dois bons momentos: no início, quando falou da "falsa leveza da seda verde e amarela" da faixa presidencial, e ao final quando, emocionada, prometeu ser rígida contra transgressões, assegurou não ter "compromisso com o malfeito", declarou-se desprovida de rancor e ressentimentos e, convidando a oposição ao diálogo, curvou-se à evidência de que é presidente de todos os brasileiros. E chorou.

Transpareceu franqueza e vontade genuína de, sem dizer, acertar onde Lula mais errou. Que assim seja.

A propósito. Melhor frase de Dilma no discurso do Parlatório: "Respeitarei a crítica, pois é o embate civilizado que move as democracias."

Síntese. A última decisão do presidente Luiz Inácio da Silva, a negativa da extradição de Cesare Battisti, condenado por quatro homicídios na Itália, estava tomada havia quase um ano.

O governo brasileiro nunca pretendeu atender ao governo italiano, que sabe disso há seis meses porque o próprio Lula informou a Silvio Berlusconi.

O primeiro-ministro concordou e inclusive assegurou que não faria pressão durante a campanha eleitoral, mas pediu que na justificativa da decisão o Brasil de forma alguma desse a entender que Battisti poderia correr o risco de ser alvo de atos discricionários por parte do Estado italiano, uma democracia.

Pois com palavras floreadas foi exatamente o que acabou fazendo a Advocacia-Geral da União em seu parecer pela negativa da extradição sob a justificativa de que a situação de Battisti poderia sofrer "agravamento" se fosse devolvido ao país de origem, devido a pressões da opinião pública.

Ora, o único "risco" existente é o do cumprimento da pena de prisão perpétua. A alegada "suposição" de agravamento da situação configura exatamente a acusação velada de que a Itália poderia agir fora dos limites legais. Daí a reação dura dos italianos.

Irritou também a demonstração de esperteza tosca de deixar o anúncio para a 25.ª hora, quando Lula já estaria fora de cena e, portanto, longe do centro da circunstância adversa.

Como fez durante os oito anos de governo. O ato final sintetizou o padrão de conduta.

Entre a razão e o imenso desafio:: Clóvis Rossi

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Sob a retórica da continuidade, mas avanços, o discurso de posse de Dilma Rousseff trouxe a primeira novidade, embora esperada: sai a emoção pura, o intuitivo Luiz Inácio Lula da Silva, entra a razão pura.

Das 14 páginas do discurso, conforme previamente distribuído à imprensa, apenas as duas primeiras são, por defini-las de alguma forma, de emoção e reconhecimento a Lula e ao vice José Alencar.

Daí em diante, é uma lista das "ferramentas" necessárias ao avanço. Discurso muito mais de gerente do que de política, o que, de resto, combina perfeitamente com a biografia da presidente.

Pena que haja um excesso de generalidades e platitudes e uma carência de detalhes.O elenco de necessidades e maneira de encará-las pode ser aplaudido pelo DEM e pelo PT, pelo PSB e pelo PSDB.

Talvez só não o seja pelo PSOL, o único partido que questiona o modelo que marcou os dois governos que antecederam Dilma.

Surpreende, em todo o caso, que Dilma volte a um tema caro a Lula, o da miséria e o da comida à mesa dos brasileiros.

Lula, ao ser eleito, dizia que ficaria satisfeito se todo brasileiro pudesse ter três refeições diárias.

Oito anos depois de tanto "nunca antes na história deste país", vem sua sucessora e apadrinhada dizer que não vai descansar "enquanto houver brasileiros sem alimentos na mesa".

Fica claro, pois, no próprio discurso, que o povo brasileiro ainda "não fez a travessia para uma outra margem da história", ao contrário de uma das poucas frases de efeito usada no discurso.

Ao estabelecer como meta a erradicação da miséria absoluta, ao mesmo tempo em que crava como "valor absoluto" a estabilidade econômica, Dilma cria para si um baita desafio, nunca antes resolvido no mundo todo.

Voto de confiança:: Eliane Cantanhêde

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Sai Lula, entra Dilma. Vai-se o mito, chega a presidente mulher, com a responsabilidade de aumentar investimentos, priorizar educação, saúde e segurança, enfrentar as reformas estruturais, garantir a exploração e partilha adequadas do pré-sal, correr contra o tempo para o sucesso da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016. E erradicar a miséria.

Difícil será preencher o vazio de um presidente carismático, palanqueiro e sem limites como Lula, amado dentro e fora do país pelas qualidades e pelos defeitos. Se é que ele vai desencarnar da Presidência.

Dilma é dura, aplicada, determinada. Como ministra, extrapolava com subordinados e com os próprios colegas. Como presidente, esse traço de personalidade estará exacerbado e sendo permanentemente testado, inclusive com o eclético leque de "aliados".

Mas Dilma encontra um país estável política e economicamente, os brasileiros com a autoestima em alta, o mundo maravilhado com esse Brasil cheio de encantos mil.

As condições são francamente favoráveis, e suas características femininas e de militante ajudam. Lula não é de esquerda nem de direita, Dilma tem ideologia. Será capaz de queimar pontos de popularidade se a circunstância exigir. Tem rumo, direção, metas, compromisso.

Vai precisar se suplantar, como se suplantou na campanha, para se equilibrar diante de PT, PMDB, PSB, PCdoB, Sarneys, o vice Temer, os áulicos. Que Erenice Guerra tenha servido de lição. Antes na Casa Civil do que agora na Presidência.

O Brasil elegeu Dilma e lhe dá não apenas um voto de confiança, mas também o estímulo, a torcida e a esperança. O sucesso dela será o sucesso de todos e do futuro.

Itamar, Fernando Henrique e Lula garantiram um círculo virtuoso, e Dilma deve ser uma presidente honesta, sensata, coerente, com grandeza e princípios, para ir além. É só não arriscar tudo para tentar ser o que não será: um mito.

O advento da era da razão :: Gaudêncio Torquato

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Dúvidas balizam as interlocuções nos mais diversos ambientes: como será o governo da presidente Dilma Rousseff? Ela vai impor autoridade? Será pálida sombra do ex-presidente Lula? Sem traquejo na área política, conseguirá administrar as pressões partidárias e passar pelo olho do furacão nas Casas congressuais? As interrogações se apresentam pelo fato de suceder a um governo acentuadamente marcado pelo perfil do líder mais carismático de nossa contemporaneidade.

Sob esse prisma, a leitura mais linear é a de que a fosforescência do ciclo anterior tende a ofuscar a luz que se acende no palco que se abre. Pode-se apostar nessa hipótese? Não. A tendência é a de que a nova iluminação até propicie comparações de cores e matizes com a anterior, particularmente no seio de conglomerados que não mais verão no palanque a pessoa que identificavam como uma de suas legítimas representantes. As massas cultivam a catarse gerada por líderes carismáticos, que nelas provocam contínuas descargas emotivas. Vão perdê-la. Se a perda ocasionará algum vazio para elas, fará bem à identidade do governo Dilma. A alteração da maneira de agir do governante, pela forma de contato com as plateias, será benéfica ao País, pois o império da razão suplantará o reinado da emoção. Ciclos calcados na glorificação de imagens geralmente descambam na anestesia social. E uma sociedade anestesiada fecha as portas do futuro.

Não é preciso ser profeta para anunciar que a primeira mulher a comandar o País abrirá a era da racionalidade. Basta examinar sua trajetória na coordenação do Ministério Lula. Trata-se de pessoa afeita a planejamento, gerenciamento, controles e cobrança. Isso, por si só, é merecedor de aplausos, eis que passamos - e perdemos - um bocado de tempo interpretando a expressão do presidente que saiu ou ensaiando versões sobre o que disse ou tentou dizer. A substituição do verbo pela ação constitui um avanço. Os grupamentos pragmáticos, a partir das forças produtivas, terão motivos para comemorar o fato de que, doravante, encontrarão pautas mais concisas e objetivas. Os eventos serão desprovidos da verve de discursos improvisados e metáforas, ganhando mais substância. O que será condizente com um país que precisa regular os parâmetros a uma nova ordem. Há uma conta (grande) a ser paga e que, sabe-se, tem sido empurrada com a barriga - 2011 se prestará a ajustes, entre os quais o financiamento da área da saúde, o preenchimento dos buracos da Previdência, cada vez mais fundos dada a expansão da conta dos aposentados, carências no setor de segurança, etc.

Quando se diz que o Brasil passou ao largo da crise financeira internacional (2008-2009), pouco se destaca que isso não se deu de maneira fortuita. A política que propiciou a milhões de brasileiros amplo acesso ao consumo oxigenou as veias da economia. Chegou, porém, o momento de o País adequar a política econômica às novas disposições da economia internacional, no entendimento de que não é uma ilha de segurança no mundo conturbado. O início de um novo governo é ideal para integrar políticas e alinhar posições. Nesse ponto emerge o perfil da presidente. Não se espere que o primeiro ano da governante seja pleno de realizações e ações de impacto. Servirá, isso sim, para a correção de rumos e desvios, justaposição de programas e projetos, a partir de rígida revisão do PAC. Como agirá Dilma? É possível distinguir na nova mandatária-mor um senso crítico mais acentuado que o de seu antecessor. Será mais exigente e inflexível do que Lula nas cobranças. Essa característica, aliás, ganhará relevo, até porque é esse vetor que balizará sua identidade. O alinhamento da equipe ministerial tomará um bom tempo, não se devendo descartar a possibilidade de substituição de um parafuso na engrenagem, em caso de desgaste. Trata-se de uma constelação sem grandes estrelas, facilitando sua harmonia. Mas o conjunto de ministros escolhidos deve ser considerado um grid de largada. No meio e no final da pista, a disposição poderá ser diferente.

As expectativas em torno do desempenho da presidente levam ainda em conta a questão do gênero. Há muita curiosidade para saber se uma mulher terá melhor desempenho que um homem no comando da Nação. Especula-se que suas dificuldades serão menores nos espaços do obreirismo e nas áreas sociais (programas assistenciais) e mais complexas nas frentes econômica e política. A permanência do ministro Guido Mantega na Fazenda, a escolha de um perfil técnico para o Banco Central (Alexandre Tombini) e a nomeação de Antônio Palocci para comandar a Casa Civil, tendo sido ele ministro da Fazenda no primeiro mandato de Lula, lhe darão conforto e garantia de que a política econômica estará sob controle. E para ajudá-la a administrar a relação com as esferas política e jurídica a presidente terá à disposição a experiência de seu vice, Michel Temer, professor de Direito Constitucional e presidente do PMDB, que dirigiu a Câmara dos Deputados por três vezes. Com esse respaldo são mínimas as possibilidades de grandes crises na frente política.

Por último, a pergunta recorrente: Lula mandará no governo Dilma? Trata-se de hipótese débil. A dirigente deverá impor seu estilo. O ex-presidente, por sua vez, quer ver a glória da sucessora. A intromissão descabida na gestão seria um desastre para ambos. É evidente que deverá ser acionado para dar conselhos, principalmente em circunstâncias tormentosas. Luiz Inácio, como animal político, continuará a circular por muitas plagas, usufruindo o prestígio que angariou, fazendo palestras, recebendo honrarias, comovendo-se com aplausos. Sabe, porém, que há uma liturgia de poder a ser preservada. Sob pena de esboroamento do edifício que construiu. E queima da própria imagem.

Jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação.

O show que não houve:: Ferreira Gullar

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Teria apenas uma intérprete, alguns poucos músicos e muita conversa sobre Noel Rosa e sua curta vida

Na crônica que publiquei aqui, sobre Noel Rosa, falei de um show sobre ele, que pensei realizar, mas desistira do projeto ao saber que este é o ano do centenário de seu nascimento e que muita coisa já se estava fazendo para homenageá-lo.

A ideia do show me surgira ao ouvir, depois de anos, os sambas de Noel, e achei que muita gente também iria gostar de ouvi-los de novo.

O show imaginado por mim teria apenas uma intérprete, poucos músicos e muita conversa sobre o compositor e sua curta vida. A mistura dessas duas coisas me parecia interessante, mas certamente não era lá uma sacação tão original.

Devo esclarecer que nunca me atrevi a escrever ou realizar qualquer espetáculo musical e não seria agora que me aventuraria a fazê-lo.

Sonhei com ele, imaginei-o: uma cantora com um violão a interpretar os sambas deliciosos de Noel que, se não estou equivocado, deu à nossa música popular muito mais malícia, bom humor e um modo irreverente de cantar o amor e outros assuntos às vezes estranhos ao nosso repertório musical. Ele só raramente mostrava-se romântico e, quando o fazia, jamais descambava para o sentimentalismo deslavado. "Enquanto você faz pano/ Faço junto do piano/ Estes versos pra você." Era isso que deveria mostrar o show que não houve.

Porque pensei numa cantora apenas, com um violão e uns poucos músicos? Porque não vejo suas músicas num grande musical, executado por grandes orquestras. Vejo-o, como de fato foi, cantando em rodas de boêmios com seu violão.

Certamente, pode-se levar suas composições à execução de grandes orquestras, mas esse não seria o Noel com que me identifico e comovo. Por isso, o meu show começaria com a cantora interpretando, com muita graça, seu primeiro sucesso: "Eu hoje estou pulando que nem sapo/ Pra ver se escapo/ Desta praga de urubu/ Já estou coberto de farrapo/ Eu vou acabar ficando nu".

Se fosse noutra época, a cantora poderia ser Nara Leão; hoje, escolheria Marisa Monte ou Adriana Calcanhotto. Já imaginou o encanto novo que qualquer delas emprestaria aos sambas de Noel?

"Quem dá mais?/ Por uma mulata que é diplomada/ Em matéria de samba e de batucada/ Com as qualidades de moça formosa/ Fiteira, vaidosa e muito mentirosa", "Quem dá mais/ Por um violão que toca em falsete/ Que só não tem braço, fundo e cavalete/ Pertenceu a Dom Pedro, morou em palácio/ Foi posto no prego por José Bonifácio."

E entre uma música e outra, diria de sua irresistível vocação para a boemia, das noitadas no Café Nice, dos papos com Lamartine Babo, Ismael Silva, Orestes Barbosa, sem falar nos instrumentistas e nos cantores, como Custódio Mesquita e Aracy de Almeida, sua intérprete preferida.

"Eu sou diretora da Escola do Estácio de Sá/ E felicidade maior neste mundo não há/ Já fui convidada para ser estrela de nosso cinema/ Ser estrela é bem fácil/ Sair do Estácio é que é o "x" do problema".

Haveria muita coisa interessante a contar da vida de Noel, que fez sambas com 56 parceiros, sem contar os sambas de outros, a que acrescentou um verso aqui, um acorde ali, sem querer tirar patente.

É que compor, cantar e farrear era o seu prazer maior, sem o que a vida não fazia sentido. Nascera para aquilo, tanto que, enquanto os outros sambistas buscavam os meios profissionais, o estúdio das rádios, os restaurantes frequentados por gente do ramo, Noel se enturmava mesmo era com os malandros dos botecos de subúrbios e das favelas.

Teria que falar também de seus namoros e amores, que não foram poucos e nem sempre deram certo: "Se alguma pessoa amiga/ Pedir que você lhe diga/ Se você me quer ou não/ Diga que você me adora/ Que você lamenta e chora/ A nossa separação/ E às pessoas que eu detesto/ Diga sempre que não presto/ Que meu lar é o botequim/ E que eu arruinei sua vida/ Que não mereço a comida/ Que você pagou pra mim". Lindaura, com quem o obrigaram a casar-se, sofreu o diabo em suas mãos, mas foi no colo dela que descansou a cabeça, pouco antes de deixar para sempre sua Vila Isabel e as noitadas de farra.

Mas um show não pode terminar, assim, para baixo, pensei. Foi quando me voltei e vi, na última fila da plateia, um sujeito magro, de queixo torto, que se levantou e saiu, antes que a luz acendesse.

O dia D :: Flávio Tavares

DEU NO ZERO HORA (RS)

Sabem todos que Dilma Rousseff deve sua eleição a Lula da Silva e às engrenagens do poder descomunal da “máquina” federal, que ele usou de fio a pavio, como nunca fora utilizada. Ela própria é a primeira a reconhecê-lo. Engana-se, porém, quem pense que Dilma venha a ser na Presidência da República apenas um boneco de ventríloquo que fale e aja pela boca e mãos do mago maior. Ou um papagaio repetindo as palavras do capataz à peonada na roda de chimarrão.

Inteligente e sagaz, Lula ocupou sempre todos os espaços, mas – no fundo – sua grande preocupação existencial foi o futebol e o Corinthians, até na vida sindical. Também Dilma foi sempre protagonista, mas criativa e com visão própria. Mocinha ainda, na luta armada contra a ditadura forjou seu primeiro ato político concreto. Em junho de 2005, levada à chefia da Casa Civil no bojo da crise que encurralava o presidente, lembrei que ela integrava a geração que se preparou para o poder nos clássicos da sociologia e da economia, tendo O Capital, de Marx, como ponto de partida – mas não dogma de chegada – para desvendar a sociedade.

Vindo da esquerda, conviveu com a direita e, ao final dos oito anos de Lula da Silva, era das poucas figuras no governo em condições de disputar uma eleição sem a pecha de escândalos.

Não analiso, aqui, por que a corrupção seguiu nem por que Erenice Guerra (seu braço forte em Brasília) foi foco de subornos milionários. O tempo pós-eleitoral é outro e indago como a presidente Dilma, criativa e tenaz, comandará o ministério medíocre formado pelas pressões da politicalha interesseira?

No início do governo Lula, as credenciais de Dilma no secretariado gaúcho, anos antes, a levaram ao Ministério de Minas e Energia. Fôramos o único Estado sem racionamento de eletricidade nos apagões de 2001. Ela escolhera as pessoas certas, encabeçadas pelo então diretor de operações da CEEE, Valter Cardeal de Souza, e a eletricidade foi o fio que a levou aonde está.

Agora, a maioria dos 37 ministros não tem vínculos com a função. A estratégica Secretaria de Portos, por exemplo, foi dada aos irmãos Cid e Ciro Gomes, do Ceará, que nela emplacaram o conterrâneo Leônidas Cristino, prefeito do Crato, a 200 quilômetros do mar, no sertão semiárido. Lá não há porto e as águas do Rio Acaraú permitem apenas um amarradouro de barcos de madeira. O Ministério da Pesca ficou com a catarinense Ideli Salvatti, senadora loquaz mas que nunca pescou sequer um lambari. O ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, foi denunciado pela promotoria pública de Minas, dias atrás, por fraudes e desvios de verbas quando prefeito de Belo Horizonte. O de Turismo, Pedro Novais, quando deputado em 2009, debitou despesas num motel em Brasília na conta da Câmara Federal. O Ministério dos Transportes ficou (de novo) com Alfredo Nascimento, do Amazonas, onde não há estradas nem ferrovias.

O ministro dos Esportes, Orlando Silva, do PC do B, continua, apesar das denúncias do Tribunal de Contas pelo desvio de milhões de reais nos Jogos Pan-Americanos. Não se sabe por que Carlos Lupi foi ministro do Trabalho nem por que continua. Também continua Fernando Haddad, correto, mas que só soube de Educação quando chegou ao ministério de mesmo nome.

Até nomes exponenciais (como Aloizio Mercadante, na Ciência e Tecnologia) estão fora de lugar. Sem falar de Antonio Palocci, que saiu às pressas do governo Lula no escândalo do jardineiro da casa de “garotas de programa” em Brasília, e volta como figura-chave. Como foi Dilma no tempo de Lula.

O dia “D”, de Dilma, recém começa como data decisiva.

*Jornalista e escritor

O que pensa a mídia

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Olhares distintos sobre o mesmo ''mito''

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
(Publicado ontem - Caderno Especial)

Entrevistas: Andre Singer, doutor em Ciência Política e Chico Oliveira, sociólogo aposentado da USP

Intelectuais emergentes do PT fazem avaliações divergentes sobre o saldo político dos oito anos de governo de Luiz Inácio Lula da Silva


Malu Delgado e Alberto Bombig

Luiz Inácio Lula da Silva despede-se do poder com um catálogo de aliados e críticos, inclusive dentro do próprio PT. Em janeiro de 2003, quando subiu a rampa do Palácio do Planalto para passar à história como o primeiro presidente operário do Brasil, o cientista político André Singer e o sociólogo Chico de Oliveira integravam o staff de intelectuais de esquerda ligados ao PT que ao longo de duas décadas ajudaram a formular as bases e os programas do partido.

Singer, que hoje dedica-se a entender as "razões sociais e ideológicas do Lulismo", seria nomeado porta-voz da Presidência logo em seguida e permaneceria no cargo durante todo o primeiro mandato, desligando-se do governo em 2007 para retomar as atividades acadêmicas.

Oliveira, em outro extremo, romperia com partido que ajudara a fundar quatro meses depois, decepcionado com os rumos do governo. Agora, ao término da Era Lula, ambos fazem ao Estado um balanço, antagônico no conteúdo, do que ficará para a História da passagem do ex-metalúrgico pelo poder.

Para Oliveira, sempre calcado nos ditames do pensamento de esquerda, Lula teve desempenho mediano e não deixará um legado aos trabalhadores brasileiros. Singer, embasado na análise sobre a atração que Lula exerceu às classes menos favorecidas, destaca a incorporação social como sua principal herança.

Andre Singer: ‘Lula deu provas expressivas de apego à democracia’

A vinculação do "subproletariado" a Lula, que o sr. classifica de "lulismo", justificaria, por si só, a alta popularidade em 8 anos?

Não. São dois fenômenos ligados, mas diferentes. De um lado tem essa mudança de base social, que tem a ver com esse processo de realinhamento que começa em 2002 e se completa em 2006 e é caracterizado por essa mudança de perfil da base eleitoral de Lula e do PT: antes muito ligado à classe média e, agora, ao subproletariado (a faixa da população com renda familiar mensal de até dois salários mínimos). A outra coisa é que no segundo mandato os índices de popularidade subiram muito e, evidentemente que quando chegam à proporção a que chegaram atingiram muito mais gente que o subproletariado. O que é característico desse período é o fato de que a candidatura Dilma foi sustentada exatamente por esses eleitores subproletários. A alta popularidade tem, de um lado, essa base fiel que se expressou na votação da Dilma, acrescida de um público de classe média que provavelmente decorre de um grande êxito econômico do governo. O governo conseguiu produzir uma situação de crescimento que parece ser sustentável.

No seu ensaio sobre as raízes sociológicas do lulismo, o sr. menciona que o suporte do subproletariado deu "autonomia bonapartista" a Lula. O presidente foi estadista? Foi democrático?

O bonapartismo tem associação com componentes militares, o que definitivamente não está em questão. Quando eu disse que há uma certa autonomia, é de fato o resultado de uma base social que se articulou a partir do projeto executado no primeiro mandato de maneira que lembra uma passagem do Marx no O 18 Brumário, aquela em que ele diz que no caso da França os camponeses não podiam se auto-organizar enquanto classe. Eles tinham de ser organizados de cima para baixo, por identificação com quem estava no alto. Tem algum grau de semelhança com a situação dos subproletários no Brasil. Quando eu lancei a hipótese de que haveria por parte desse setor uma identificação com o projeto do presidente Lula, eu estava querendo dizer que essa camada se articulou, virou um ator político. É nesse sentido que foi feita a comparação com O 18 Brumário. Eu diria que o presidente deu provas expressivas de apego à democracia, e a maior delas é não ter patrocinado uma emenda em favor do terceiro mandato. Ele poderia ter feito, teria condições políticas para isso. Fez uma opção a favor da alternância do poder.

Um dos aspectos do populismo clássico é a identidade do líder com as massas, sem intermediários - característica de Lula. O presidente resvalou para o populismo em seu governo?

Lentamente, o lulismo está caminhando para o PT. Isso faz com que esse traço de ligação direta não esteja ocorrendo porque há fortalecimento de um partido político. Talvez o que exista é uma certa continuidade entre o lulismo e o getulismo, continuidade que não pode ser tomada fora do seu contexto. Estaria ligada ao fato de que tal como Getúlio Lula também parece estar incorporando setores que historicamente estavam fora do arranjo social principal, estavam à margem. Embora haja tantas diferenças entre a situação dos anos 50 e a atual, certa gramática política parece que voltou. Não temos elementos suficientes para falar em populismo.

A semelhança entre Vargas e Lula estaria na incorporação de classes excluídas ou há semelhanças entre os dois?

As semelhanças maiores teriam relação com essa incorporação e com o grau de autonomia que esse elemento de incorporação tenha dado a um e a outro. Essa autonomia leva a um componente importante que é a capacidade do presidente de arbitrar o conflito entre as classes.

O presidente Lula soube arbitrar conflitos de classe?

Sem dúvida. Foi um dos traços dos dois mandatos. Ele teve êxito nessa operação delicada. Um bom exemplo é perceber como dentro do governo há o agronegócio e setores que pressionam pela reforma agrária.

O sr. fala da incorporação de duas almas contraditórias ao PT (incorporação ao capital e inclusão social). Essa divisão está na cabeça de Lula?

A impressão que tenho é que ele opera por sínteses. O governo abriu espaço às duas almas.

Qual é o maior legado de Lula?

A incorporação, a inclusão social. O Brasil sempre operou por uma modalidade de permanência das elites com alta dose de exclusão. Esses oito anos abriram a porta, deram os passos iniciais para essa inclusão. Os exemplos são múltiplos, e vão desde o Bolsa-Família até a geração de empregos, passando pelo aumento do salário mínimo, crédito consignado.

Ao deixar o governo como "pai dos pobres", Lula incitou a divisão de classes no País?

Não incita divisão. Se a gente for fazer um balanço, vai prevalecer essa decisão de não promover a radicalização política. A política do governo não é radical, não incita a divisão. Embora não incite, essa divisão é real. O Brasil é um país muito desigual e foi de fato feita uma política em que favoreceu um setor da sociedade que estava historicamente fora. Esse movimento de inclusão social está produzindo uma certa polarização, que é sociopolítica. Até aqui essa polarização não tem dado sinais de ameaças à democracia. Enquanto isso estiver dentro dos marcos democráticos, não é necessariamente negativo. Há uma polarização com bases sociais. Os atores políticos e o presidente, em particular, não estão incitando uma polarização.

O sr. vê mudanças entre o primeiro e o segundo mandato?

Vejo. Houve uma certa inflexão "desenvolvimentista" no segundo mandato, inflexão à esquerda no sentido de flexibilizar o gasto público.

A crise do mensalão poderia ter custado a reeleição se Lula não tivesse apoio popular?

Poderia. O episódio marcou o afastamento de uma base eleitoral de classe média. Se em lugar de ter esse movimento de novas adesões ao presidente na base da sociedade em 2006 tivesse havido movimento de espraiamento da rejeição, diria que teria marcado um outro destino.

QUEM É
É doutor em Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), jornalista, ex-porta-voz (de 2003 a 2007) e ex-secretário de Imprensa (no período de 2005 a 2007) da Presidência da República do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.


Chico Oliveira: ‘O presidente esteve à beira de se tornar um autoritário’

Qual leitura o sr. faz dos oito anos do presidente Lula?

O balanço geral é mediano. Essa história de "nunca antes neste país" é conversa fiada. O Brasil foi a segunda economia mundial a crescer sustentadamente durante um século. Mas foi um crescimento feito sem nenhuma distribuição de renda. A gestão do presidente Lula não diminuiu desigualdade nenhuma, isso é lenda criada a partir de muita propaganda. O que houve foi uma transferência de renda a partir do governo para os estratos mais pobres. Distribuição ocorre quando existe a mudança da renda de uma classe social para outra. Nesse sentido, não houve nenhum avanço.

O sr. concorda com os que afirmam que Lula é um mito?

Sim, e como acontece em todos os casos o mito é maior do que a realidade. Ele construiu um mito poderoso devido a vários fatores, entre os quais, conta o muito o fato de ele ser de origem pobre. Até hoje o presidente é considerado um operário, mas não pega em uma ferramenta há 50 anos. Isso o ajuda a fomentar uma figura.

E o Bolsa-Família?

Nós fomos educados na ética cristã, que nos impede de sermos indiferentes à fome. Então, ninguém pode ser contra. Agora, politicamente, o programa diz que o crescimento econômico continua sendo excludente, que é preciso algo por fora do salário para dar condições de vida às pessoas. Outro fator grave é que ele é uma regressão, uma volta à política personalista, baseada no favor, algo ruim da tradição brasileira.

André Singer, cientista político e ex-assessor de Lula na Presidência, compara os anos Lula aos de Roosevelt (presidente dos EUA entre 1933 e 1945 e recuperou a economia daquele país). O senhor concorda?

Respeito muito o André como intelectual. Ele elevou o nível de debate no PT. Mas acho que há um equívoco da parte dele. Lula não pegou o País em uma grave crise. Os anos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) não foram gloriosos, mas não foram de quebradeira, de jeito nenhum. Roosevelt pegou os EUA no fundo da crise. Além disso, o André se esquece de que Roosevelt acabou com o trabalhismo americano. Entre as grandes democracias do mundo, a única na qual os trabalhadores não têm um partido é a dos EUA.

O sr. vê traços autocráticos no presidente Lula?

Montado nessa popularidade, ele exagerou. O presidente esteve à beira de se tornar autoritário. Foi além dos limites. Só duas pessoas no século 20 disseram, como ele, que eram a encarnação do povo: Adolf Hitler e Joseph Stalin.

Lula e o PT chegaram ao Planalto fazendo um discurso forte contra a corrupção. O sr. se decepcionou nesse quesito?

O poder absoluto corrompe muito. O presidente do Brasil pode nomear muitos cargos. Não há partido que resista a uma coisa dessas. O PT se perdeu no poder, ficou menor do que o presidente e não consegue impor seu programa. Lula e o PT tem um estilo predatório de administrar o Estado e lidar com as finanças públicas.

Lula foi melhor do que Fernando Henrique Cardoso?

Fui muito amigo do Fernando Henrique durante 12 anos e nos afastamos quando ele virou presidente. Fui revê-lo depois que ele deixou Brasília. Sei quem ele é e já fiz essa comparação. Fernando Henrique fez muito mal ao Estado com as privatizações. Ele, com isso, quebrou a capacidade de o Estado regular a economia, quebrou alguns instrumentos construídos com o sacrifício do povo para que o Estado pudesse intervir na economia. Mas tentou avançar institucionalmente, e essa é a grande diferença entre eles. O Lula não tem uma criação institucional. A República não avançou um milímetro com Lula. O que é celebrado na gestão Lula não se transformou em regra. Getúlio Vargas (ditador e presidente do Brasil de 1930 a 1945 e presidente de 1951 a 1954), quando criou as leis trabalhistas, obrigou as empresas a seguirem as regras da nova legalidade, que significavam uma nova hegemonia. A sociedade caminha pela luta de classes dentro dos caminhos que a hegemonia cria. Não ocorreu isso com Lula.

Mas e o aumento do salário mínimo não é um avanço?

Não, é um processo da economia, nada está garantido. Se amanhã a economia der para trás, o salário mínimo que se dane, não é um avanço. O salário mínimo do Juscelino Kubitschek (presidente entre 1956 e 1961) chegou, em valores de hoje, a R$ 1.500, e caiu porque as forças do trabalho não tiveram capacidade de sustentá-lo e porque logo depois viriam os governos militares. Avanços são direitos. Para ficar na história como um estadista, não apenas como um presidente popular, Lula deveria ter transformado, por exemplo, o Bolsa-Família em legislação constitucional. Não fez reformas. O Lula não é um estadista, de jeito nenhum. Ele não é aquele que constrói instituições que significam uma nova hegemonia.

O sr. estava entre os fundadores do PT...

Isso de fundador não faz muita diferença. Muita gente estava na fundação do partido (no colégio Sion, em São Paulo, em 1980) e depois nunca mais apareceu. O que interessa é a militância, e eu fui militante.

Como o sr. acha que a era Lula ficará para a História?

Se os historiadores tiverem juízo, ele será lido como o presidente mais privatizante da história. Ele não é estatizante, isso é falso, uma lenda que a imprensa inventou e que ele usa como arma. Ele é privatizante no sentido de estar criando regras para que poucos grupos controlem a economia brasileira, usando o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) para isso. Com Lula, nós estamos entrando naquilo que a teoria marxista chamava de capitalismo monopolista de estado, do qual não há volta. Todas as vezes que essas forças crescem, as dos trabalhadores diminuem. É esse país que ele vai legar para a Dilma.

Diante da alta popularidade de Lula, o sr. se arrepende de ter saído do PT?

De jeito nenhum. Esse negócio de popularidade é como maré, vai e volta.


QUEM É

Chico de Oliveira é professor aposentado de sociologia da Universidade de São Paulo, da qual recebeu o título de professor emérito, e foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Entre seus livros, destaca-se Crítica à Razão Dualista.

Ao assumir, Dilma promete enfrentar desafios pós-Lula

DEU EM O GLOBO

A economista Dilma Vana Rousseff, de 63 anos, assumiu a Presidência da República prometendo consolidar o legado do presidente Lula e fazendo uma carta de intenções de seu governo: erradicar a miséria, melhorar a saúde, a segurança e a educação. Também prometeu reformas política e tributária, que o governo Lula não fez. Dilma reafirmou compromissos com a estabilidade econômica, a democracia e a liberdade de expressão. Ex-guerrilheira, eleita numa disputa acirrada, ela também fez um discurso de conciliação. Disse que estende a mão à oposição e que quer ser a presidente de todos os brasileiros. Presa, torturada pela Ditadura militar, chorou ao lembrar os companheiros que morreram e disse que não guarda arrependimento, mas tampouco ressentimento ou rancor. Dilma destacou que é a primeira mulher a chegar ao Planalto e prometeu "honrar as mulheres, proteger os mais frágeis e governar para todos". Mineira, citou Guimarães Rosa para dizer que precisará de coragem para a tarefa de governar.

Dilma e os desafios do pós-Lula

Primeira mulher presidente do Brasil promete fazer país avançar mais e fala em conciliação

Luiza Damé e Chico de Gois

Eleita com 55.752.483 (56,05%) de votos, a petista Dilma Rousseff, de 63 anos, assumiu ontem a Presidência do Brasil como a primeira mulher a ocupar o cargo e prometendo "consolidar a obra transformadora" do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na solenidade de posse no Congresso, se comprometeu a erradicar a pobreza extrema, manter a estabilidade econômica, ampliar investimentos, melhorar a qualidade da educação, da saúde e da segurança, entre tantas outras promessas, numa demonstração de que reconhece que muita coisa ainda precisa ser feita e que seus desafios são enormes.

Depois de oito anos de poder, Lula não conseguiu conter a emoção ao receber sua sucessora - eleita graças à sua imensa popularidade - na rampa do Palácio do Planalto e passar a faixa. Diferentemente do que prometia seu estilo, Lula não discursou, mas em seguida à cerimônia caiu nos braços do povo e chorou por diversas vezes.

Antes de empossar seus 37 ministros, no discurso no parlatório, dirigido ao público na Praça dos Três Poderes, Dilma pediu apoio da população para dar continuidade ao trabalho iniciado no governo Lula. A presidente, que embargou a voz e interrompeu sua fala para tomar água, disse ter a responsabilidade de manter, com o vice Michel Temer, a parceria de Lula e José Alencar para "seguir no caminho iniciado por eles" no rumo do desenvolvimento. Afirmou que, para governar um país continental como o Brasil, é preciso sonhos mais do que metas.

Dilma abriu o discurso dizendo estar muito feliz por ser a 1ª mulher a assumir a Presidência, mas emocionada porque chegava ao fim o mandato do "maior líder popular que este país já teve":

- São coisas que se guardam para a vida toda. Conviver todos esses anos com o presidente Lula me deu a dimensão do líder justo e apaixonado por sua gente.

- Lula estará conosco. A distância de um cargo nada significa para um homem de tamanha grandeza e generosidade. Saberei honrar esse legado e avançar nessa obra de transformação do Brasil.

Para Dilma, foi a vontade de mudança que levou um operário à Presidência e, agora, a ousadia do povo levou uma mulher ao Palácio do Planalto. A presidente afirmou que o esforço, a dedicação e o nome de Lula estão "gravados no coração do povo":

- Nesse período, o presidente liderou as transformações deste país. Isso permitiu que o povo brasileiro tivesse uma nova ousadia: colocar pela 1ª vez uma mulher na Presidência. Para além da minha pessoa, a valorização da mulher melhora nossa sociedade.

Ela reafirmou o compromisso de cuidar "com muito carinho dos mais frágeis e necessitados". Prometeu governar "de mãos abertas e estendidas" para "todos os brasileiros e todas as brasileiras". Num recado à oposição, disse estar disposta a conversar com os aliados de primeira hora e com os que não participaram da sua eleição:

- Não peço a ninguém que abdique de suas convicções. Buscarei o apoio, respeitarei a crítica. É o embate civilizado entre as ideias que move as grandes democracias como a nossa. Não carrego nenhum ressentimento nem espécie de rancor.

Dilma homenageou seus companheiros de luta contra a ditadura, dizendo que sua geração pagou um preço pela redemocratização do país:

- Aos companheiros que tombaram, minha comovida homenagem e minha eterna lembrança.

A presidente disse que muito foi feito nos últimos oito anos, mas ainda há muito o que fazer. Foi nesse momento, que a voz falhou:

- Foi por acreditar que podemos fazer mais e melhor que o povo nos trouxe até este momento.

E pregou a união para que o Brasil continue crescendo, gerando empregos e criando oportunidades:

- É o sonho que constrói um país, uma família, uma nação. Esse é o desafio que ergue o país. Existem metas e objetivos, mas também existem sonhos. Para governar um país continental do tamanho do Brasil é preciso ter sonhos e persegui-los.

Mais uma vez citou Lula, que a aguardava no Palácio, onde se encontravam a mãe da presidente, Dilma Jane, sua filha, Paula, e a tia Arilda.

- Foi por não acreditar que havia o impossível que o presidente Lula fez tanto pelo país nesses últimos anos. Para consolidar e avançar as grandes conquistas recentes precisarei muito do apoio de todos vocês. Vou estar ao lado dos que trabalham pelo bem do Brasil. Se todos trabalharmos pelo Brasil, o Brasil nos devolverá em dobro nosso esforço.

Dilma encerrou o discurso pedindo a bênção de Deus para transformar o Brasil "no maior e melhor país para se viver".

Primeiro discurso repete mantra da reforma política

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Adriana Fernandes e Edna Simão

Ao contrário do antecessor e padrinho político, que prometeu cinco reformas, a presidente Dilma Rousseff foi econômica ao abordar o tema das reformas estruturais. Ela acionou apenas o velho mantra dos dois presidentes anteriores em defesa da reforma política, que ela classificou de "tarefa indeclinável e urgente". Para os tributos prometeu uma "racionalização" e não tratou da reforma da Previdência.

Dilma não deixou claro que tipo de reforma política pretende apoiar e apenas mencionou generalidades sobre o assunto.

A nova presidente evitou empenhar sua palavra em encaminhar temas espinhosos como a reforma da Previdência. E desidratou a reforma tributária, classificando-a apenas de "conjunto de medidas" modernizantes e simplificadoras do sistema tributário. Mudanças na legislação trabalhista, um dos compromissos assumidos mas não entregue por Lula, não foram sequer mencionadas.

Curiosamente, Dilma se mostra mais interessada em aprovar justamente a reforma que menos depende de uma ação do governo, já que envolve os diferentes interesses e opiniões de toda a classe política. Por isso, a dificuldade e o fracasso de governos anteriores em ver essa reforma aprovada. "É tarefa indeclinável e urgente uma reforma política com mudanças na legislação para fazer avançar nossa jovem democracia, fortalecer o sentido programático dos partidos e aperfeiçoar as instituições", disse a presidente em seu discurso.

Logo em seguida, Dilma citou a necessidade de medidas na área tributária para racionalizar e simplificar o sistema. Foi um esvaziamento claro da ideia de uma ampla reforma tributária, que tem derrotado os governos há pelo menos duas décadas. Em nenhum momento de seu primeiro discurso como presidente citou a expressão reforma tributária, indicando que poderá optar pelo mesmo caminho dos antecessores: fazer mudanças pontuais associadas a desonerações tributárias para alguns setores econômicos.

Sem esforço. Em 2003, Lula disse que faria a reforma tributária que a "sociedade reclamava". Mas tanto ele quanto seu antecessor Fernando Henrique Cardoso passaram seus dois mandatos sem se empenhar de fato com a aprovação das várias propostas que chegaram a ser enviadas ao Congresso Nacional. A última delas foi enviada pelo próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega, no início de 2008.

Sem fazer nenhum esforço para aprovar a proposta que ele mesmo enviou, Mantega, que continua no cargo no novo governo, preferiu optar por mudanças infraconstitucionais e, na maioria dos casos, beneficiando apenas setores e grupos econômicos com maior poder de lobby na Esplanada dos Ministérios. Os sinais são de que essa linha de ação continuará.

A reforma da Previdência, prometida e feita parcialmente por Lula, ficou completamente fora do discurso de Dilma. A presidente destacou que o Brasil optou, em sua história, por construir um Estado provedor de serviços básicos e de Previdência Social pública, o que implica custos elevados para toda a sociedade.

Após escândalo, Erenice Guerra reaparece no Planalto

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Ex-ministra da Casa Civil é recebida com entusiasmo pela presidente; José Dirceu também foi à cerimônia

Mariângela Gallucci e Eugênia Lopes

Afastada da Casa Civil sob suspeita de envolvimento e montagem de um esquema de lobby dentro do Palácio do Planalto, a ex-ministra Erenice Guerra ressurgiu ontem na cerimônia de posse da presidente Dilma Rousseff. Toda de preto, com uma saia esvoaçante e uma bolsa vermelha, Erenice ficou na ala destinada a convidados especiais - e não na de ex-ministros de Estados - e foi efusivamente cumprimentada pela nova presidente.

Acompanhada do marido, José Roberto Camargo Campos, Erenice recebeu um longo abraço de Dilma, com direito a beijo, mão na cintura e tapinhas no ombro. Ao fim, depois de tirar foto ao lado da presidente e do marido, Erenice acariciou a faixa presidencial.

Mais tarde, Erenice também circulou pelos salões do Itamaraty, onde a presidente recepcionou os convidados da festa depois da cerimônia de posse. Ela disse à reportagem do Estado que espera voltar a advogar a partir do próximo mês. Disse que não se encontrou com Lula desde que foi demitida da Casa Civil e não quis dizer se manteve algum contato com Dilma.

Quando deixou a Casa Civil no início de abril de 2010 para disputar a presidência, Dilma indicou Erenice para ocupar sua vaga. As duas trabalharam juntas praticamente durante todos os dois governos de Lula. Dilma conheceu Erenice durante a formação do primeiro governo de Lula. Desde então, ficaram amigas.

Antes das eleições, Erenice foi obrigada a sair do governo diante da suspeita de envolvimento em esquema de lobby. Antes das denúncias, Erenice era apontada como presença certa no governo de Dilma.

Dirceu. Quem também participou da cerimônia de posse de Dilma foi o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu. Acompanhado de sua mulher, Ivanise, ele ficou na ala destinada a ex-integrantes do governo Lula e foi um dos mais paparicados por atuais integrantes da gestão Dilma, convidados e políticos que dividiram com ele a Esplanada no primeiro governo Lula.

Hospitais universitários ganham estatal

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Entre últimos atos, Lula cria empresa para resolver impasse dos centros médicos, que reúnem cerca de 22 mil profissionais terceirizados

Lígia Formenti

No seu primeiro dia de mandato, a presidente Dilma Rousseff recebeu de herança do antecessor Luiz Inácio Lula da Silva uma nova estatal na área de Educação, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Criada para resolver o impasse dos hospitais universitários, que reúnem cerca de 22 mil profissionais terceirizados - prática considerada ilegal pelo Tribunal de Contas da União -, a empresa ficará encarregada da execução de assistência, ensino e pesquisa na área da saúde.

A criação da estatal - a sexta do governo Lula - foi feita por Medida Provisória, publicada ontem no Diário Oficial. Pelo texto, num primeiro momento profissionais podem ser contratados temporariamente.

No trecho do seu discurso dedicado à área social, a presidente Dilma Rousseff deixou recado de qual será o tom de seu governo nesse campo: melhorar o acesso e a qualidade dos serviços prestados. Na Educação, além do afago aos professores, que ela afirmou serem as verdadeiras "autoridades" da área, Dilma apresentou medidas práticas.

Comprometeu-se a aumentar o investimento público na área e apresentou a proposta de ampliar o ProUni para o ensino médio profissionalizante.

ProUni. Criado em 2004 para garantir o acesso de alunos carentes a cursos de graduação, o ProUni foi desde o início uma iniciativa que caiu no gosto tanto de alunos, de professores quanto de proprietários de instituições privadas. Estudantes com renda familiar de até um salário mínimo por pessoa podem receber bolsas integrais. Já aqueles com renda até três salários mínimos por pessoa, podem receber bolsas parciais, com 50% do valor da mensalidade. Instituições que aderem ao programa, em troca, têm isenção de tributos. Nos últimos cinco anos, foram oferecidos 1,12 milhão de bolsas.

Na Saúde, Dilma reivindica um papel nada modesto: "Quero ser a presidenta que consolidou o SUS, tornando-o um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo." Um sistema, que, em sua avaliação, precisa atender os problemas das pessoas que procuram, seja com métodos de diagnóstico e tratamento, seja com medicamentos.

Mas, ao contrário da Educação, ela não menciona para a área maiores investimentos. Em vez disso, ela acena com autoridade: "Vou acompanhar pessoalmente o desenvolvimento desse setor."

Mais adiante, ela completou: usaria da força do governo federal para acompanhar a qualidade do serviço prestado e o respeito ao usuário.

Assim como reforço com instituições de ensino particular para ampliação do ProUni, Dilma disse estar interessada em estabelecer parcerias com o setor privado na área da Saúde, sobretudo para assegurar a reciprocidade na utilização dos serviços do SUS. Resta saber, no entanto, como isso se dará na prática.

Itália pode retaliar Brasil com veto a acordo militar

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Decisão de Lula de não extraditar Battisti ameaça parceria na área naval

No dia 11, Congresso italiano pode rejeitar a proposta que prevê a construção de fragatas e embarcações de apoio


O Brasil poderá sofrer a primeira consequência diplomática por ter decidido não extraditar o terrorista italiano Cesare Battisti daqui a menos de duas semanas.

No próximo dia 11, o Parlamento italiano deve votar a aprovação de um acordo de cooperação militar firmado entre Brasil e Itália que prevê o desenvolvimento de projetos para a construção de navios de patrulha oceânica, fragatas e embarcações de apoio logístico.

Esse é o último passo para que a negociação possa sair do papel. Em recente entrevista à imprensa italiana, o ministro da Defesa, Ignazio La Russa, afirmou que tudo o que o governo italiano podia fazer em relação ao acordo há havia sido feito e que o "resto cabe ao Parlamento".

Antes mesmo da decisão oficial de manter Battisti, ele disse que "ninguém deveria imaginar que um "não" à extradição de Cesare Battisti não teria consequências". "Eu consideraria isso um grande dano às relações bilaterais", completou.

Ao fechar a negociação, em junho de 2010, o ministro da Defesa brasileiro, Nelson Jobim, afirmou que a parceira intensificaria "as relações com a Itália, de forma a estabelecer entendimentos em diversos setores, tanto na área de Defesa, como nas de ambiente e de cultura", afirmou, então.

BATTISTI

Boa parte das críticas à decisão do Brasil de manter Cesare Battisti no Brasil saíram de parlamentares que, agora, terão de analisar o acordo militar em questão.

No último dia de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu não extraditar Battisti ao entender que, se ele voltasse à Itália, poderia sofrer perseguição ou discriminação por sua atuação política durante os anos de chumbo na Itália, durante a década de 1970.

Lula contrariou o que havia dito o STF (Supremo Tribunal Federal), que entendeu não haver essa possibilidade e autorizou o envio de Battisti ao seus país, onde ele foi condenado à prisão perpétua por envolvimento na morte de quatro pessoas.

Battisti, porém, nega participação nos assassinatos e diz sofrer perseguição política. Ele havia obtido refúgio político do então ministro da Justiça, Tarso Genro, mas o ato foi posteriormente anulado pelo próprio Supremo.

A decisão do governo brasileiro de mantê-lo no Brasil fez com que a Itália chamasse de volta seu embaixador no Brasil, ato que representa o primeiro sinal de um possível rompimento diplomático entre dois países.

A mesma reação também havia ocorrido quando o Tarso concedeu ao italiano o status de refugiado.

TIRO NO PÉ

Autoridades brasileiras acreditam que a reação da Itália, contudo, não deve passar disso.

Consideram que uma possível retaliação do governo italiano poderia ser um "tiro no pé", já que existem diversos pedidos de extradição feitos pela Itália para o Brasil e que, normalmente, são concedidos.

Além disso, o caso ainda precisará passar por nova análise do Supremo Tribunal Federal, antes que Battisti seja posto em liberdade.

Existe a chance, portanto, de o tribunal novamente anular o ato de Lula, caso venha a considerá-lo ilegal.

Alguns ministros avaliam que o presidente não poderia ter usado o mesmo argumento de Tarso, de que ele pode ser mesmo perseguido na Itália, pois o Supremo já descartou essa hipótese.

Outros porém, segundo a Folha apurou, acreditam que o presidente da República pode se opor ao que diz o Supremo Tribunal Federal, já que o primeiro analisa o caso politicamente, enquanto o segundo o faz de forma técnica.

Aécio: 'Faremos oposição leal ao Brasil e vigorosa'

DEU EM O GLOBO

Senador mineiro vai apresentar proposta de reformas política e tributária. Serra defende colaboração entre governos

Adauri Antunes Barbosa, Cristiane Jungblut e Maria Lima

SÃO PAULO e BRASÍLIA. Político mais aplaudido na celebração da posse do governador Antonio Anastasia (PSDB), o ex-governador e senador eleito Aécio Neves (PSDB) prometeu fazer uma oposição "atenta e vigilante" ao governo da presidente Dilma Rousseff (PT), mas disse que espera o apoio de senadores da base do governo para construir uma agenda de reformas de interesse do país.

- Como brasileiro, desejo a ela sorte em sua gestão, mas repito: não há governo forte sem oposição forte. Faremos uma oposição leal ao Brasil e aos brasileiros, mas vigorosa em relação às ações do governo - disse Aécio, acrescentando que deve concluir, em até dois meses, um esboço de uma agenda de reforma política e tributária do país, além de medidas que julga necessárias ao fortalecimento de estados e municípios.

Aécio afirmou já ter mantido conversas com senadores da base da presidente e estar otimista em relação à construção das reformas, para que o Congresso não seja "caudatário de uma agenda de interesse exclusivo do Poder Executivo".

- Isso apequena o Congresso e é o que tem acontecido ao longo dos últimos anos - afirmou.

Perguntado sobre a ascendência do presidente Lula sobre Dilma e a influência do petista no novo governo, Aécio disse esperar que o ex-presidente cumpra a promessa de ter um comportamento exemplar:

- O presidente Lula disse algumas vezes que demonstrará na prática como deve agir um ex-presidente da República. Vamos aguardar e observar qual é a forma que ele compreende que seja a mais adequada.

Aécio disse esperar que Minas não sofra discriminação por parte do governo federal. O tucano criticou a escolha do primeiro escalão do governo Dilma, por contar com apenas um representante de Minas Gerais, o ex-prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel (PT).

- Como ele entra numa cota pessoal, vejo que do ponto de vista político Minas ficou excluída do atual governo - disse.

O ex-governador de São Paulo, José Serra (PSDB), afirmou, durante a posse do governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB), que a população quer a cooperação entre os governos federal, estadual e as prefeituras:

- O que a população sempre espera é cooperação entre governos. Nós governamos assim em São Paulo. O Covas governou assim, o Alckmin também, eu governei assim e o Alckmin vai continuar governando assim.

Em rápida conversa com jornalistas, Serra se limitou a dizer que, daqui para a frente, vai "ganhar a vida" já que "não tem renda", mas não abandonará a atividade política:

- Na atividade política, eu sempre estive e vou continuar.

Já em Brasília, num plenário dominado por aliados que gritavam palavras de ordem elogiosas, alguns integrantes da oposição marcaram presença na cerimônia de posse de Dilma, no Congresso. O deputado Bruno Araújo (PSDB-PE) chegou a ficar inquieto com a ausência de colegas da oposição:

- Fiquei sozinho no ninho!

Aos poucos, outros foram chegando, e o deputado Antônio Carlos Magalhães (DEM-BA) sentou-se ao lado de Dilma, porque é integrante da Mesa Diretora. Questionados, os parlamentares respondiam que cumpriam uma obrigação constitucional.

- Estou cumprindo meu dever constitucional - defendeu José Carlos Aleluia (DEM-GO).

Já o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) não perdeu a chance de criticar o longo discurso de Dilma.

- Ela fez um discurso horroroso, para agradar todo mundo. Ela estendeu a mão para a oposição, e nós também lhe estendemos a mão. Mas não bastam só palavras - disse.

Elis Regina - Corsário (Original)

O poeta :: João Cabral de Melo Neto

No telefone do poeta
desceram vozes sem cabeça
desceu um susto desceu o medo
da morte de neve.

O telefone com asas e o poeta
pensando que fosse o avião
que levaria de sua noite furiosa
aquelas máquinas em fuga.

Ora, na sala do poeta o relógio
marcava horas que ninguém vivera.
O telefone nem mulher nem sobrado,
ao telefone o pássaro-trovão.

Nuvens porém brancas de pássaros
acenderam a noite do poeta
e nos olhos, vistos de fora, do poeta
vão nascer duas flores secas.