domingo, 4 de dezembro de 2011

Vício privado, pior que o público:: Clóvis Rossi

Mais que os Estados, são os particulares que se afogaram em dívidas, e assim continuam

A narrativa convencional sobre a crise europeia atribui toda a culpa aos governos que gastaram demais e se endividaram demais. Logo, o tratamento só pode ser o que está sendo aplicado um pouco por toda a parte: furibundos cortes de gastos.

É claro que há uma lógica sadia na defesa do equilíbrio orçamentário: ninguém -nem o Estado, nem o botequim da esquina, nem pessoas físicas- deveria gastar mais do que ganha (salvo se puder se financiar de maneira sustentável, o que não é o caso da Europa na presente conjuntura.)

Feita essa ressalva, do mais puro sentido comum, é preciso desconstruir a narrativa convencional, pela simples razão de que ela não é verdadeira: quem gastou demais no período prévio à crise de 2008 foram os particulares, em especial a banca.

Dados de um relatório técnico do Parlamento Europeu: a dívida pública em relação ao PIB da zona euro diminuiu -repito: diminuiu- de 72% em 1990 para 67% em 2007. Note que o período abrange os anos de bonança, em que gastar e, para isso, endividar-se passaria sem grandes escândalos.

Já as dívidas das famílias subiram de 52% para 70%, e as das instituições financeiras pularam de 200% para 250%, sempre como proporção do PIB.

A grande diferença entre o vício público e o vício privado é que, na hora do aperto, os particulares correm para os braços (ou melhor, para os cofres) do Estado, o que o Estado não pode fazer no sentido inverso, como se está vendo agora.

Contar a história da dívida como ela de fato é, em vez de adotar a preguiçosa narrativa convencional, não é apenas um exercício de respeito aos fatos, mas também uma maneira de alertar para a possibilidade de que o receituário para sair da crise pode aprofundá-la porque não leva em conta que a crise da dívida é maior na banca do que no Estado.

Os bancos não confiam nos seus pares, como informa o "El País": "Um reflexo da crescente desconfiança é que os bancos preferem depositar seus fundos no Banco Central Europeu, com remuneração baixíssima, em vez de emprestá-los a outras entidades com maiores rendimentos mas sem segurança". Detalhe eloquente: o BCE paga apenas 0,5% por esses depósitos ante 2,5 vezes mais na banca privada.

Nesse ambiente, avança-se rumo ao temido "credit crunch", o estrangulamento do crédito, que foi o impulsionador do "crash" de 2008/09, avisam banqueiros centrais de diferentes países. "Há sinais de um "credit crunch", com o receio de que se torne pior", diz Mervyn King, que comanda o Banco da Inglaterra.

Se falta dinheiro para azeitar a máquina econômica, que é a função legítima da banca, retirar ainda mais dinheiro, via cortes brutais de gastos, equivale a tirar a máscara de oxigênio de um doente em respiração assistida.

Ou, como prefere Paul Krugman, Nobel de Economia: "Embora líderes europeus continuem a insistir em que o problema é gasto demais nas nações devedoras, o verdadeiro problema é gasto de menos na Europa como um todo. E seus esforços para corrigir as coisas exigindo austeridade ainda mais áspera desempenharam um grande papel para tornar a situação pior".

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

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