quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A primavera árabe e nós:: Raimundo Santos

As revoluções árabes eclodiram como ações de grandes contingentes sociais, especialmente a “Revolução de Jasmim” da Tunísia que venceu um “Estado autoritário degenerescente”, como diz o cientista político argelino Samir Nair (cf. Merval Pereira, O Globo, 02/12/11). Neste processo tunisiano, a “totalidade da sociedade” (sic) protagonizou uma “mobilização pacífica e não-religiosa” tendo por consequência um objetivo que lhe era homólogo: a democracia política, cuja vigência diz respeito a todos os cidadãos.

As revoluções árabes mostram que aquele mundo castigado pela pobreza popular e guerras não está condenado a permanecer como um mundo à parte e distante. Mostram sobremaneira que a democracia não é qualidade intrínseca ao Ocidente, mas tem valor universal, como anunciou o dirigente do Partido Comunista Italiano Enrico Berlinguer, em um momento dos anos 1970 de grande desencanto. A tese berlingueriana foi lançada em 1973, logo após a derrota por meios sangrentos da via democrática ao socialismo intentada por Allende em um Chile esgarçado e literalmente partido ao meio. Também já se notava nessa época os primeiros sinais do esgotamento do próprio socialismo que poucos anos depois chegaria ao colapso na URSS e em países europeus, não obstante a derradeira tentativa -- derrotada -- de democratização do socialismo real liderada por Gorbathev com as suas duas linhas de desconcentração: A glasnot (as liberdades) e a perestróica (a economia).

A tese da democracia como valor universal significava que a democracia valeria – e vale – para os países socialistas àquele tempo ainda tidos por muitos ambientes de esquerda como exemplos de igualdade, mesmo que todos eles fossem regimes nãodemocráticos. A democracia como valor universal também passava a constituir as estratégicas socialistas de alguns Partidos Comunistas. Em suma, o pressuposto da tese de Berlinguer era o de que ela haveria de se generalizar tanto na realidade efetiva como ser aceita pelas ideologias políticas, na Europa, no mundo nãoocidental, como agora se vê nas revoluções árabes e aqui no Brasil.

No Brasil, a recuperação das liberdades e a conquista ora consolidada do Estado democrático de direito provêm da resistência da frente antiditatorial, à qual, nos piores anos de chumbo, poucos lhe creditavam eficácia, sendo, no entanto, a mobilização nacional que derrotou, por meio da política, o todo poderoso regime militar de 1964. O movimento democrático brasileiro realizou nossa revolução democrática, materializando o seu programa reformista-democrático (que alcança a todos) na Constituição de 1988.

Foi a via política e pacífica protagonizada por amplos e variados setores da sociedade brasileira que recuperou as liberdades no país. Como na “Revolução de Jasmin”, ela nos leva a ver – aqui mais claramente do que lá, pois já é processo consumado entre nós – a associaçao homóloga entre a organização da vida nacional sob vigência das liberdades e a natureza igualmente democrática de um reformismo resultante dos anos da resistência ao regime de 1964. Um reformismo que traduz ao plano do acesso às oportunidades e proteções, o princípio da democracia como valor universal. Um reformismo que se estende sem exceção a todos os que as pleiteiem dos três poderes em seus diferentes níveis e demandem iniciativas várias ante outras dimensões da esfera pública, todos esses direitos consolidados na Carta de 1988. Constituição que precisamos atribuir função mudancista estratégica ao tempo em que aceitamos, sem reservas ou ambiguidades, o Estado democrático de direito; postura que Habermas define como compromisso ineliminável da esquerda de hoje.

Raimundo Santos, professor da UFRRJ.

FONTE: BOLETIM DA UFRRJ

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