sábado, 26 de novembro de 2011

Marx, a obra e seu mundo

Cyro Andrade

Era o ano de 1883. "Em 14 de março, 15 para as 3 da tarde, o maior pensador vivo cessou de pensar." Foram essas as palavras pesarosas com que Friedrich Engels iniciou sua fala no funeral de Karl Marx, encontrado morto três dias antes. Cerca de dez pessoas estavam presentes no cemitério de Highgate, em Londres, informava a edição do dia 22 do "Der Sozialdemokrat", órgão do Partido Social-Democrata alemão. Em nome das ideias de Marx, no entanto, fizeram-se revoluções - a começar pela de 1917, na Rússia, onde nasceu então o primeiro regime socialista do mundo. Essa face institucional da criação política de Lênin e seus aliados bolcheviques iria extinguir-se em 1991, quando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deixou formalmente de existir. Passados 20 anos desse esfacelamento de um sonho comunista, que se completam em 31 de dezembro, as últimas palavras de Engels à beira do túmulo de Marx, 128 anos atrás, soam absolutamente verdadeiras: "Seu nome atravessará os tempos, como também sua obra".

E assim foi, embora as ideias de Marx - e de Engels, seu amigo e parceiro intelectual -, acabassem por se tornar, para muitos, mera referência para estudos acadêmicos de interessados em revolver baús da teoria econômica comunista ou da aplicação do socialismo dito científico - searas em que não faltariam registros de insucessos desastrosos.

Contudo, a permanência do marxismo como método de análise e interpretação da vida em sociedade é um fato de todos os dias, ainda que submetido aos rigores, pelo lado dos antimarxistas, de uma crítica que vai da desqualificação intelectual ao mero desdém. Enfim, o pensamento de Marx, e de Engels, continua a atrair a atenção de estudiosos de filosofia, política, sociologia, economia, antropologia. E a fidelidade ideológica ainda reúne muita gente em torno dele, no mundo todo. Isso, embora sua obra, para quem o vê apenas como um nome por trás de uma utopia que teve a validade vencida quando a União Soviética se desfez, tenha se esvaído como uma espécie de inutilidade histórica. Essa será, porém, uma simplificação. Pois não há como negar que Marx foi um dos mais importantes pensadores do século XIX.

"Marx e Engels mostraram que sua teoria investigava a realidade da época e apontava para uma direção que poderia mudar com a história"

Como argumenta o economista Ricardo de Mendonça Lima Tolipan em "A Ironia na História do Pensamento Econômico", (Ipea - 1990), teria deixado de haver razões para "nos prevenirmos contra uma leitura de Marx que acaba por criticá-lo. Pelo contrário, talvez o seu discurso esteja afinal paralisado por mais de um século de leituras de 'boa vontade', um discurso inutilizado por leituras sectárias, dogmatizado pela necessidade de atacá-lo ou defendê-lo. Quem sabe se numa estratégia menos maniqueísta de leitura não esteja sua possibilidade futura?"

A obra de Marx continuaria, então, aberta a interpretações e, quem sabe, a futuros reencontros com a realidade concreta. Fique-se com a possibilidade de novas leituras, literalmente, das inúmeras páginas que escreveu - no mínimo em tentativas para compreender o que ele diz, campo minado em que geralmente se perdem as melhores intenções de esclarecimento.

Raymond Aron passou décadas estudando a obra de Marx, doutrina que, dizia, tem uma qualidade raramente encontrada no mesmo grau entre outros pensadores: pode ser acuradamente explicada em cinco minutos, cinco horas, cinco anos, ou em meio século. Também permitiria, esse saber de formidáveis dimensões e alcance intelectual, que pesquisadores dediquem sua vida a tentar compreender o que Marx queria dizer, afinal, e acabem na autoindulgência de uma "semiconfissão de ignorância" ("O Marxismo de Marx", Arx, 2005).

Marx e Engels preocupavam-se com o uso que a posteridade faria de suas ideias. Mary Gabriel, autora de "Love and Capital - Karl and Jenny Marx and the Birth of a Revolution" (publicado pela Little Brown, nos Estados Unidos, e a ser publicado no Brasil pela Zahar em 2012), mencionou, em entrevista ao Valor, carta em que Engels fala sobre esses cuidados a um amigo, em 1853. "Os receios de que experimentos políticos baseados nas ideias deles pudessem ser conduzidos de forma apressada soam como se ele previsse as interpretações equivocadas das ideias de Marx que se fariam no século XX - afinal, fracassadas. Mas Engels diz que ele e Marx estariam protegidos de acusações de serem brutos e estúpidos porque se teriam documentado em sua literatura. Penso que isso é muito importante para nós, hoje. Não deveríamos ler interpretações de Marx e Engels, mas deveríamos ler Marx e Engels eles mesmos, para chegar à mais exata compreensão de suas ideias." Sempre, claro, dentro do possível.

Neta de avô russo emigrado da União Soviética para os Estados Unidos, Mary ouvia falar de Marx e suas ideias ainda na infância e se lembra de leituras do "Manifesto Comunista". Mas não é nem comunista, nem marxista, diz. "O único 'ismo' que tem a ver comigo é o de jornalismo" (ela foi editora da Reuters por mais de 20 anos, antes de se dedicar à literatura).

Mary escreveu o livro, "uma biografia de Marx e sua família", sem pretender esclarecer qualquer aspecto da teoria do filósofo. Quis, apenas (e o faz com bom material de pesquisa e senso de contextualização) "apresentar os leitores ao homem e à sua vida pessoal, de modo que fôssemos todos ajudados a ter noção adequada do lugar onde suas ideias eram produzidas [sua casa, sua família] e como sua própria vida as afetava. Acredito que, compreendendo-se o homem Marx, seja mais fácil compreender o teórico Marx."

Historiador inglês procura demonstrar que desapareceram todas as condições para se encontrar o comunismo em sua feição característica

Seja qual for a profundidade da leitura que se faça da obra de Marx, será preciso ter em mente que ele foi um homem de sua época, sujeito a todas as influências de seu tempo, observa Fernando Magalhães, professor do programa de pós-graduação em filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (autor de "10 Lições sobre Marx" - Vozes, 2009). Isso não o teria eximido de assumir responsabilidades inerentes à expressão pública de seu pensamento. "Os intelectuais são responsáveis por aquilo que dizem. Se alguém não explica claramente o que falou, suas ideias podem ser apropriadas de várias formas". Contudo, "ninguém tem o direito de fazer o que quiser com suas palavras".

Então, pode-se discutir como seria a transformação do mundo pretendida por Marx, isto é, como se daria a revolução que, ele imaginava, faria o capitalismo sucumbir - se pacífica ou violenta. Contudo, pondera Magalhães, afirmar, por exemplo, que Marx aceitaria a permanência do capitalismo se o sistema proporcionasse "trabalho e justiça para todos" já não seria uma interpretação, mas uma "falsificação" uma "criação", um "erro grosseiro". Marx não via alternativa: o capitalismo deveria desaparecer.

A leitura pode ser dogmática. "Aí, o autor se transforma em um mito ou num deus", adverte Magalhães, "tem-se uma espécie de leitura hagiográfica, tudo que ele falou está correto. Existem correntes marxistas que ainda acreditam nisso e Marx não teria se equivocado em nada. Mas tanto ele como Engels mostraram que sua teoria era a exposição de um processo em movimento. Investigava a realidade [da época] e apontava para uma direção, que poderia mudar, dependendo dos rumos tomados pela história" (o texto exemplar disso, recomenda Magalhães, está na introdução de Engels a 'As Lutas de Classes na França', de Marx).

E há a leitura dos "marxistas mais lúcidos, que, embora considerem o marxismo uma teoria não só útil, mas inteiramente válida para entender o capitalismo, reconhecem que, apesar de ainda ser o principal instrumento para compreender a realidade, não é a única a ser aplicada, em função de todas as transformações operadas no interior do próprio sistema capitalista". Seria apenas coincidência, pergunta Magalhães a esse propósito, que as crises continuem a ocorrer e que os próprios empresários e capitalistas tentem compreender como Marx previu tais crises com tanta antecedência?

Mal-entendidos, seja qual for a cor das lentes que se coloquem sobre os escritos de Marx, tanto podem ser de boa-fé ou ideologicamente propositais. Nesta categoria estaria a responsabilização de Marx por tudo de mau que ocorreu na extinta União Soviética. Magalhães faz a observação e recomenda a leitura do livro "Marx (sem ismos)", do espanhol Francisco Fernandez Buey (editora da UFRJ, 2004), no qual se lê, assinala, que "as interpretações apressadas condenam Marx por tudo que ocorreu na URSS, mas ninguém condena Cristo, ou mesmo a "Bíblia", pela Inquisição. Não é lá que está escrito 'à bruxa não deixarás viver'? Ou o "compelle intrare", que se encontra no Evangelho, com a proposta de trazer os fiéis de volta à casa pela força? Mas aí - ah, não, é diferente! Interpretaram mal o que o livro quer dizer. Mas Marx não se interpreta mal."

Para efeitos práticos, contudo, já não haveria utilidade em remexer no que Marx disse ou deixou de dizer. Em livro agora publicado no Brasil ("Ascensão e Queda do Comunismo" - Record, 2011), o cientista político e historiador inglês Archie Brown faz a completa demolição da mais ínfima perspectiva de ressurreição do sistema que, imaginaram Marx e Engels, se sobreporia ao capitalismo. O que acabou foi o comunismo, desmilinguido na prática e envelhecido na teoria.

Marx e Engels preocupavam-se com leituras equivocadas de suas ideias no futuro - e por isso se documentavam, escrevendo

"Se até certo ponto ainda faz sentido descrever como comunista o maior e mais importante dos Estados ainda governados por um partido comunista", diz Brown, "é por que a China mantém plenamente o monopólio do poder do partido e a organização estritamente hierárquica e a disciplina associadas ao "centralismo democrático". De muitas maneiras, porém, a China é hoje um sistema híbrido. Sua economia se afastou tanto da ortodoxia comunista que tem sido descrita como um exemplo de "capitalismo de partido-Estado".

Brown chega à constatação da sucumbência do comunismo, na atualidade e nas possibilidades de ser encontrado em algum lugar no futuro, por considerar que características essenciais do sistema foram se afastando mais e mais da realidade visível em qualquer parte do mundo (com a exceção talvez da Coreia do Norte). Essas peculiaridades seriam as seguintes:

Monopólio do poder mantido pelo partido comunista. "Na época de Stalin, isso era conhecido como "a ditadura do proletariado", já que se entendia como um axioma que o partido representava os interesses e a verdadeira vontade do proletariado. No período pós-Stalin, principalmente a partir do início dos anos 1960, o termo oficial mais comum era "o papel da liderança do partido", em vez de ditadura do proletariado.

Centralismo democrático. "Teoricamente, significava que podia haver uma discussão de questões - o componente "democrático" - até que se chegasse a uma decisão. A partir daí, a decisão dos principais órgãos do partido era obrigatória e tinha que ser implementada de maneira estritamente disciplinada.

Posse não capitalista dos meios de produção (ou sua posse estatal ou social), condição à qual se liga uma quarta, o domínio de uma economia de comando, em oposição a uma economia de mercado.

Propósito declarado de construir o comunismo como objetivo final e legitimador. "Em termos de política cotidiana, isso era claramente muito menos importante do que o papel de liderança do partido ou o centralismo democrático. Era, porém, uma característica que diferenciava os sistemas comunistas dos regimes totalitários e autoritários, bem como dos países governados por partidos socialistas do tipo social-democrata. Tinha um lugar importante na ideologia oficial, embora não tivesse importância prática imediata."

Existência de um movimento comunista internacional e o senso de pertencer a ele. "A existência desse movimento era de grande importância ideológica. Era o suposto internacionalismo do comunismo que atraía muitos de seus adeptos."

"Das seis características, são as duas últimas que desapareceram mais completamente", observa Brown. O movimento comunista internacional tinha sede em Moscou, embora a China de Mao tenha representado um polo de atração alternativo. "Esse movimento transnacional acabou, e também a aspiração de construir uma sociedade comunista. Apesar da retórica de ter o comunismo como objetivo, nenhum partido comunista governante ainda enfatiza sequer em teoria o movimento em direção a uma sociedade sem Estado, a fase culminante e 'inevitável' do desenvolvimento humano, conforme imaginado por Marx."

Magalhães não vê um quadro como o sugerido por Brown, pronto e acabado. "Apesar de ter escrito no século XIX, as linhas gerais [ressalva que ele sublinha] da teoria de Marx permanecem válidas. Marx fez uma análise da anatomia do capitalismo e, não obstante as muitas revoluções, entre aspas, pelas quais o capitalismo passou, seus problemas de fundo não foram solucionados. A desigualdade entre as pessoas e entre os países, a alienação, a relação trabalho/capital, tudo se mantém no interior do capitalismo atual."

Para Magalhães, o "espectro de Marx" de que falava Jacques Derrida anda por aí, nas praças das manifestações de revolta popular, nas marchas contra a corrupção, na crítica à discriminação racial e social, até no combate à homofobia. "Um espectro não morre. Acho que este é o segredo de Marx. Ele viu o lado científico da história, mas também se empolgou com o pathos, a paixão que move as massas. Acho que é por isso que ele está vivo e sempre retorna quando volta a crise."

O próprio Marx fala em "espectro", aquele de um "falso comunismo". Suas palavras: "Estou a um passo da morte e temo pelo que virá, temo pelo que será feito em nome de minhas ideias e pelo que não será possível fazer. Certa vez, disseram-me que, na França, um partido político dizia-se marxista, e eu retruquei de imediato: 'Eu, pelo menos, não sou marxista'."

Marx era, contudo, um benevolente: "Minha obra permanecerá, usem-na como quiserem, mas eu sei que meu objetivo - a análise do funcionamento do modo de produção capitalista - foi apenas iniciado, e meu universo teórico demanda e aceita contribuições e adendos, aceita até as supressões que o avanço no conhecimento exige de qualquer modelo teórico".

É o que se lê em "O Manuscrito Secreto de Marx" (Casarão do Verbo, 2011), do jornalista, escritor e economista Armando Avena, uma visão romanceada da obra e da vida de Marx - tentativa interessante de suavizar, para o leitor comum, o caminho das pedras de quem pretende compreender o gênio, ainda que pelas margens.

FONTE: EU&FIM DE SEMANA, JORNAL VALOR ECONÔMICO, 25 /11 2011

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