terça-feira, 13 de setembro de 2011

O rio do filósofo e a Dilma :: Luiz Werneck Vianna

Se ninguém se banha duas vezes nas águas do mesmo rio, como na lição do aforismo de Heráclito de Éfeso, não há por que estranhar as mudanças entre o governo de Lula e o de Dilma, por mais que esta aferre, mesmo com sinceridade, a máscara do seu antecessor, uma vez que muitas águas já rolaram, e ameaçam, sob as novas circunstâncias do mundo, rolar mais ligeiras. Estamos em mais uma crise sistêmica do capitalismo, para a qual ainda não há remédio sabido, pois a farmacopeia com que se enfrentaram os idos de 2008 parece não ter impedido a recidiva que se faz anunciar. Décadas de neoliberalismo, com suas crenças ingênuas em mecanismos autocorretores da vida econômica, de devaneios político-filosóficos de que se estava no limiar do fim da História, cedem diante de nós, jogando por terra convicções e certezas como antes, com maior estrondo, veio abaixo o Muro de Berlim.

No terreno propriamente da política há outros espantos a varrer noções que pareciam firmemente ancoradas no mundo, as massas dos países árabes são capazes de ouvir outras vozes que não as do fundamentalismo religioso, pois lá o que ora se impreca em suas ruas e praças é em nome das liberdades civis e públicas, como na Tunísia, no Egito e por toda parte daquela região, que parecia refém de suas tradições; a hegemonia americana, se ainda se sustém no seu incontrastável poderio militar, perde terreno no front decisivo da economia e se estiola numa cizânia política que dificulta a busca pelos caminhos que levem à sua recuperação; na Europa, com sua juventude acossada pela falta de oportunidades de vida, massificam-se os protestos contra o estado de coisas atual, que, surpreendentemente, chegam a Israel - antes aquietado por seus problemas político-militares com sua vizinhança árabe -, país com menos de 8 milhões de habitantes que levou às ruas quase 500 mil pessoas inconformadas com a alta do custo de vida.

Essas são algumas das linhas-força a compor o cenário internacional à frente de Dilma, que já encontra, em seu começo de mandato, a China como o maior parceiro comercial do País, viga mestra das suas crescentes exportações e do bom estado de suas contas internacionais, e um rival temível no interior do seu próprio mercado de bens industrializados. Desta vez, portanto, não provêm do Ocidente as ameaças de redução do Brasil às atividades primário-exportadoras, e, se havia ainda alguma proteção da "Linha Maginot" herdada da cultura terceiro-mundista, ela não nos serve para nada diante da arremetida comercial chinesa.

Estamos plenamente instalados no Ocidente, dominamos sua linguagem como um idioma que nos é próprio e é a partir dessa posição que nossas credenciais se fazem valer para a interlocução com os grandes do mundo e com os países periféricos, como nós, que anseiam por mudanças no destino dos seus povos. Nosso Estado, além de deter as condições de defesa do nosso território e da economia nacional, pode falar em nome da sua Carta Constitucional de 1988, que não é filha do acaso, mas da revolução democrática que envolveu a maior mobilização política, pela amplitude de massas envolvida e pelo tempo da sua duração, da História recente do País, e são seus princípios fundamentais a fraternidade, a dignidade da pessoa e os direitos humanos.

Nestas novas águas, a navegação de Dilma não tem como reiterar a do seu antecessor, assim como está visto que sua vocação para a gestão na administração pública e seu estilo político orientado para a racionalização se têm mostrado pouco aptos a assimilar as práticas nada republicanas vigentes no nosso arremedo de presidencialismo de coalizão, mais uma banca de negócios do que uma fórmula de compor partidos afins em torno de um programa comum. Não à toa, quatro ministérios já foram espanados no seu governo, notórias, a esta altura, suas dificuldades nas relações com a assim chamada base aliada, nostálgica de Lula e de suas artes de contornar problemas difíceis sem perder amigos.

Nesse caso, pode-se admitir que a mudança não tenha sido da única responsabilidade dos fatos, uma vez que a presidente Dilma também foi influente no resultado. Mas, e nas relações com os sindicatos? O novo sinal, dado à luz quando da controvérsia sobre o valor do salário mínimo, logo no início do mandato da presidente, veio dela, que não os ouviu, desconfortável com a presença deles no interior do governo, ou, em contrapartida, significou apenas uma intervenção necessária diante da sua interpretação do estado de coisas reinante na economia aqui e no mundo? Os sindicatos continuam sendo ouvidos em matérias que lhes dizem respeito, mas preferencialmente pelo ministro Gilberto de Carvalho, outra perda, outra nostalgia, Lula, agora, só acessível por interposta pessoa.

O rio é sempre cada vez mais outro. Como se entregar à prática do piloto anterior, que não lhe conhece as suas novas manhas e não pode pôr as mãos no leme do barco? Essa recente decisão da queda da taxa de juros - novela que promete alongar-se e da qual só assistimos ao primeiro capítulo -, que trama de suspense nos prepara, porque é a sorte da inflação, tabu da política brasileira desde o longo ciclo FHC-Lula, que está em jogo? E, pouco mais à frente, o inevitável desenlace para a votação do Código Florestal nos fará conhecer qual perdedor?

À vista de todos, desmancha-se a obra-prima de Lula, um governo que abarcava todos e em que ninguém perdia, pois o tempo de Dilma anuncia que, em nome da racionalização da economia, em meio a uma crise sistêmica do capitalismo, nem todos poderão ganhar por estarem ao abrigo protetor do Estado. Sem maior alarde, o Estado vai ser desocupado dessa multidão tumultuada de classes e frações de classe com interesses divergentes entre si que tiveram assento no seu interior. A lição é clássica, em épocas de crise é comum redescobrir a serventia da autonomia política do Estado.

Professor-pesquisador da PUC-RIO.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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