sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O padre que o Brasil de Severino não deixa voltar:: Maria Cristina Fernandes

Oito anos e 370 km separaram seu nascimento na conturbada Itália na metade do século passado. Filho de pequenos agricultores da Puglia, um ordenou-se padre e, aos 33 anos, optou por vir ao Brasil. Filho de operários do Lácio, o outro chegou ao Brasil clandestinamente, fugindo das Justiças italiana e francesa. Banido do país na ditadura, um luta há 31 anos pelo mesmo visto de trabalho que o outro conseguiu em 13 dias.

A história de Vito Miracapillo e Cesare Battisti só aprofunda a inexplicável diferença de tratamento a eles conferido pelas autoridades brasileiras.

Foi num 7 de setembro que o padre Vito Miracapillo selou seu banimento do Brasil. Ele chegou em 1975 para trabalhar como pároco do município de Ribeirão na diocese de Palmares, zona da mata sul de Pernambuco, região dominada pela monocultura da cana. Ao receber pedido do prefeito para celebrar uma missa em homenagem ao 7 de setembro, padre Vito enviou-lhe uma carta. Escreveu que, além de já estar comprometido com a celebração de outras missas na data e no horário sugeridos, ele não reconhecia independência num povo reduzido à condição de pedinte e sem proteção de seus direitos.

Dois pesos e duas medidas para Battisti e Miracapillo

Pe. Vito tocava a mesma toada da grande liderança católica da região, o arcebispo de Olinda e Recife, d. Hélder Câmara e da CNBB que adotou como lema naquele 7 de setembro "A independência somos todos nós"

Corria o ano de 1980 e Battisti já cumpria pena. No ano anterior ele havia sido capturado no apartamento em que seu grupo de guerrilha, o Proletários Armados para o Comunismo (PAC), guardava armas. Foi condenado mas em 1981 seus companheiros o libertaram. Ele estava na clandestinidade quando, em 1987, foi condenado pela justiça italiana à prisão perpétua por quatro assassinatos cometidos no auge do período marcado pela violência na política italiana. Em sua vida de fugitivo passaria pela França e pelo México até chegar, em 2004, ao Brasil.

A abertura já não possibilitava ações no território nacional como aquela que, 11 anos antes, havia vitimado o Pe. Henrique Silva Neto, braço direito de d. Hélder. Mas o governo João Batista Figueiredo acolheu a denúncia do deputado estadual que, mais de três décadas depois, viria a presidir a Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti.

Á época no PDS, Cavalcanti denunciou Pe. Vito ao então ministro da Justiça, Ibrahim Abi Ackel que pediu sua expulsão por subversão, atentado à segurança nacional e à ordem pública e social. No julgamento de habeas corpus do padre, o Supremo Tribunal Federal referendou a expulsão por 11 votos a zero tomando por base o Estatuto do Estrangeiro.

Vito Miracapillo ficou banido do Brasil até 1993 quando Itamar Franco revogou o decreto de sua expulsão. A partir de então o padre tem vindo quase anualmente ao Brasil mas, além do constrangimento que lhe submetem os agentes alfandegários da Polícia Federal que desconhecem os motivos da expulsão, está impedido de ficar por mais de três meses e de trabalhar no país.

No final de 2002 escreveu uma carta a Lula relatando sua história. Nunca obteve resposta. Recorreu a Frei Betto, mas também não teve sucesso.

Petistas e tucanos já se uniram pela revalidação de seu visto sem sucesso. O advogado de Miracapillo, Pedro Eurico de Barros e Silva, é um ex-deputado estadual do PSDB. O padre não quer um novo visto de trabalho, mas revalidar seu antigo documento. A democracia pressupõe uma reparação, explica, por telefone, da diocese de Canosa, em sua Puglia natal.

Em 2005 o deputado estadual João Fernando Coutinho (PSB) propôs que a Assembleia lhe conferisse o título de cidadão pernambucano. Já havia conseguido as assinaturas necessárias para o título quando a deputada Ana Cavalcanti, filha de Severino, pressionou e cinco parlamentares retiraram as assinaturas. Em audiência com o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, o deputado chegou a ter esperanças de que a revalidação do visto finalmente sairia, mas nada aconteceu.

Nessa época, Battisti chegaria ao Brasil e, três anos depois, seria preso. O substituto de Thomaz Bastos, Tarso Genro, assumiu a linha de frente por sua permanência no país, enfrentando o Itamaraty, que era favorável ao cumprimento do tratado de extradição do qual o país é signatário.

Lula rejeitou a extradição de Battisti no último dia de seu governo. A crônica política colocou a decisão no passivo que o ex-presidente quis saldar para evitar desgaste à sucessora.

De Canosa, o padre acompanhou o desenrolar do processo de Battisti sem entender por que o Brasil, depois de enfrentar interesses tão poderosos para permitir a permanência de seu compatriota, ainda resistia a rever seu banimento.

Aos 64 anos, Miracapillo gostaria de voltar à mesma pároquia a que serviu quando jovem. Como visita todos os anos a região, diz ter visto poucas mudanças por lá ao longo das últimas três décadas. O Bolsa Família, diz, não resolve os problemas estruturais nem muda a situação em que as pessoas vivem.

No programa que Miracapillo ajudou a montar, adolescentes, em grande parte filhos de cortadores de cana sem futuro na vida, recebiam meio salário mínimo para cultivar alimentos orgânicos num sítio depois do expediente escolar. Com a renda obtida, podiam ajudar suas famílias e continuar a estudar. Jovens que passaram pelo projeto hoje já concluíram a universidade. O programa, que chegou a ser premiado pelo Banco Mundial, foi descontinuado por falta de recursos.

Cesare Battisti está na casa de praia de um amigo no litoral paulista fazendo planos para voltar a trabalhar no Brasil, país que nunca poderá deixar sob o risco de ser preso.

Severino Cavalcanti (PP) foi reeleito à Prefeitura de João Alfredo, município a 126 quilômetros de Ribeirão.

Vito Miracapillo espera o resultado da audiência que seu advogado tem na próxima semana no Ministério da Justiça. Tem a expectativa de que depois deste encontro possa deixar de ser o último exilado do Brasil.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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