sábado, 9 de julho de 2011

Um país no bueiro :: Guilherme Fiuza

A Light vai ter que pagar R$100 mil por bueiro que explodir ferindo alguém. Se o próximo bueiro voador aterrissar na cabeça de quem teve essa ideia, talvez a vítima não tenha tempo de perceber como saiu barato o seu prejuízo.

O Rio de Janeiro não precisa da al-Qaeda. As explosões em série que se espalham pela cidade transformaram uma população inteira em refém. Um ano depois de ver uma turista americana voar pelos ares em Copacabana com 80% do corpo queimados, as autoridades não têm um plano contra esse terrorismo de esgoto. Nem um plano, nem um diagnóstico decente, nem um laudo conclusivo, nem ao menos um pouco de vergonha da sua própria inoperância.

Que personalidade famosa terá que ser fulminada por um bueiro para que se reconheça a situação de emergência? Que comediante terá que mostrar que uma multa de R$100 mil é o seguro de vida mais estúpido que já se inventou? Entre outras declarações surrealistas, o presidente da Light disse que bueiros já explodiram em cidades americanas. Quem terá que avisá-lo de que isso não fará a menor diferença se um bueiro explodir debaixo dos pés dele?

No meio da confusão, já apareceu até gente dizendo que a culpa é das privatizações. Falta ainda culpar o neoliberalismo, o Fernando Henrique e a imprensa burguesa. Uma outra corrente atribui a epidemia de explosões subterrâneas a uma ardilosa conspiração entre o gás metano, os fios desencapados e as fagulhas oportunistas. Os ratos e as baratas foram inocentados. Por enquanto.

Mas a crise dos bueiros não é uma piada. Piada é o que se tornou a administração pública no Brasil. As grandes cidades estão explodindo ? de gente, de trânsito, de insegurança, de infraestrutura precária e cheia de remendos. Depois da estabilização monetária e da elevação da renda da população, que projeto governamental surgiu para organizar essa sociedade emergente e cada vez mais urbana? Ninguém sabe, ninguém viu.

Depois do reinado mitológico de Luiz Inácio da Silva, iniciou-se um novo governo supostamente voltado para a gestão. Até agora, foram seis meses de gestão dos interesses parasitários do PMDB, do PT e do PR - a nova estrela do poder no Brasil. Ato contínuo à queda do ministro dos Transportes e de sua equipe acusada de corrupção, o ministro demitido assume a presidência do PR e comanda a escolha do seu próprio sucessor no ministério. Um belo exemplo de gestão da infraestrutura nacional.

Vale notar que, antes da queda do ministro, a presidente da República fez questão de defendê-lo e prestigiá-lo publicamente. Aliás, quando era ministra-chefe da Casa Civil - e supostamente coordenadora de todos os projetos do governo -, Dilma nunca se incomodou com os métodos do ministro dos Transportes. Até fez questão de mantê-lo em seu governo. Gestão é isso aí.

No caso Erenice, sua amiga e sucessora na Casa Civil, Dilma também fez questão de apoiar publicamente a ministra demitida - denunciada por várias modalidades de tráfico de influência em favor de parentes e amigos. A taxa de sucesso de 6%, no caso Erenice, e as comissões de 4%, no caso do Ministério dos Transportes, não parecem constranger a presidente. Só falta contratar a consultoria de Palocci para ajudar a escolher o próximo ministro do PR.

Com tanto trabalho para administrar cargos e verbas entre os companheiros, não deve mesmo sobrar tempo ao governo Dilma para pensar o país real - esse onde os bueiros explodem.

Não é preciso muita ciência para constatar que, se a escalada dos problemas urbanos ficar só nas mãos das prefeituras, o colapso será inevitável. O Estado brasileiro só tem força, de fato, na esfera federal. E a esfera federal está muito ocupada com o PR e seus sócios para tratar de problemas que estouram tão longe de Brasília.

Nunca antes na história deste país um governo assumiu, de forma tão desinibida, que não tem projetos. E é o país que, por acaso, vai sediar a próxima Copa do Mundo, seguida pelos Jogos Olímpicos no Rio. Mesmo para um governo varejista que marca passo sonhando com a volta de Lula, os dois megaeventos seriam no mínimo um pretexto para um projeto nacional de organização urbana.

Mas, para o governo Dilma, parece que a Copa e as Olimpíadas vão acontecer na Argentina. Não é com ele. No máximo, uma forcinha para aprovar o sigilo dos preços das obras dos estádios - uma inovação que, aliás, é a cara desse governo. E o caos viário de Rio e São Paulo, por exemplo? Quanto mais terá que se agravar para virar uma preocupação nacional?

Bem, em termos de transportes, o país acaba de ver qual é a preocupação do governo Dilma.

As explosões dos bueiros no Rio são uma caricatura patética da falência das grandes capitais brasileiras. Uma ameaça idiota e letal, à qual a sociedade assiste inerte. Talvez a vida não esteja mesmo valendo mais do que os R$100 mil da multa da Light.

Guilherme Fiuza é jornalista.

FONTE: O GLOBO

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