segunda-feira, 25 de julho de 2011

Presidentes com e sem luto:: Renato Janine Ribeiro

Não podemos tratar do luto com pressa. Superar a perda de uma pessoa querida exige tempo. A pior coisa nas revistas de celebridades é que, a cada tragédia que elas sofrem, afirma-se que a pessoa "já superou". Mas há perdas que nunca superamos, como a do filho, e outras só com o tempo. Dizia-me outro dia minha colega Clotilde Rossetti Ferreira, da USP de Ribeirão Preto, que nos casos de luto mesmo a medicação pode abafar a maneira como se lida com a perda. O tempo, matéria-prima da história, é também o que decanta o luto.

Por isso, esperei para falar da morte de Itamar Franco. Em poucos meses perdemos, após longo intervalo sem morte presidencial significativa, um vice-presidente e um presidente. O enterro de José Alencar assumiu algumas cores do funeral que é um paradigma para muitos brasileiros, o de Tancredo Neves em 1985. Seguiu-se outro vice, Itamar Franco, que se tornou titular do cargo com a condenação do presidente Collor e viveu duas décadas após o mandato. Não é o caso de comparar os dois, mas de refletir sobre a memória que deles fica, a maneira como nos despedimos, a tradução afetiva de seus legados políticos.

O Brasil tem pouca tradição na liturgia do enterro presidencial. Nossos dois imperadores, que reinaram durante quase todo o século XIX, morreram e foram sepultados no exterior. Mesmo assim, a volta dos restos mortais de Pedro I, na ditadura militar, trouxe um efeito irônico: em pleno regime de exceção, Pernambuco se recusou a honrar o corpo de quem tinha chacinado - tanto tempo antes! - suas lideranças políticas. Funerais têm um significado forte. Já no regime dito republicano, os ditadores militares e os presidentes escolhidos na fraude da República Velha não despertaram saudade ou luto maiores.

Três enterros seminais marcam nossa história, compensando, pela intensidade, seu pequeno número. O último foi o de Tancredo Neves, em 1985. A história era inacreditável. À véspera de sua posse na Presidência, encerrando 21 anos de ditadura, ele era internado; um mês depois, coincidindo com a morte do maior herói popular de Minas e do Brasil, ele morria. O itinerário do corpo atraiu multidões. Vi passar a carreta, saindo do Hospital das Clínicas de São Paulo, pelo cruzamento da Rebouças com a Brasil. Encontrei uma amiga petista, que se opusera à eleição de Tancredo pelo ilegítimo colégio eleitoral da ditadura, mas que estava chocada, como todos. Durante horas, a televisão mostrou o avião levando seu corpo para Brasília, ao som de "Canção de estudante", de Milton Nascimento. Por meia hora, o pedreiro em São João del-Rei alisou o cimento que lacrava sua sepultura. A despedida do presidente que não chegou a sê-lo foi no ritmo mais vagaroso que se possa imaginar. Eram imagens intermináveis de um enorme não-evento. Com razão: sua morte abrupta bloqueara o grande evento previsto, o frenesi de acontecimentos que seria a festa pelo fim da ditadura, fazendo o regime civil começar com um vazio espantoso. A festa, retardada, só explodiu sete anos depois, no carnaval - no melhor sentido do termo - que levou ao impeachment de Collor.

O funeral de Getúlio Vargas foi o mais forte de nossa história. Seu ministro da Justiça era Tancredo, a quem o presidente entregou a caneta com que assinou seus últimos atos; trinta anos depois, Tancredo pretendia assinar com ela o termo de posse. Vargas estava destruído politicamente na noite de 23 de agosto de 1954. Mas, ao suicidar-se, reverteu a situação. Adiou por dez anos o golpe militar. Abriu lugar para Juscelino, o desenvolvimento, Brasília, a indústria, a bossa nova. Vi seu enterro no filme "O mundo em que Getúlio viveu", de Jorge Ileli, que se concentra no luto popular por sua morte, nas cenas de orfandade de um povo que se sente privado do líder querido. Rodado em 1963, o filme só estreou em 1976.

Juscelino Kubitscheck, que morreu perseguido e cassado, teve funerais sob rígido controle. Mas foi difícil a polícia reprimir a emoção. O melhor sinal de que a ditadura perdera o apoio foi dado por um senhor que tentava entrar na igreja e, contido pela repressão, gritou: "Sou cassado!". A frase mágica permitiu que entrasse. Em 1976, a punição pela ditadura tornara-se honra.

Os dois funerais deste ano foram modestos. Felizmente, não tivemos a cena horrível, quase pagã, de cinco pessoas mortas imprensadas contra as grades do Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, que marcou a emoção e sobretudo a desorganização do enterro de Tancredo. Mas me surpreendeu, primeiro, que José Alencar fosse o primeiro político, em vinte e seis anos, a ter um enterro de porte presidencial. Muitos de nós nem lembramos quando morreram os ditadores do período militar. Não houve luto por eles. Mas, aqui, vimos um vice extremamente leal ao presidente Lula, mesmo discordando de sua política na taxa de juros, e que se tornou muito querido, como registra Eliane Cantanhede na biografia que lhe dedicou, fosse pela lealdade, pela luta contra o câncer ou, ainda, pela tenacidade que o levou a viver até o fim o mandato que recebeu do povo. E agora assistimos a um enterro mais discreto, o de Itamar Franco. Enquanto Getúlio, Tancredo e Alencar morreram à sombra de suas funções, Itamar sobreviveu à Presidência quase duas décadas. Realizou o sonho de governar Minas, apoiou e atacou FHC e Lula, continuou na ativa. O curioso e triste é que uma de suas grandes realizações, o Plano Real, dele subtraída por anos de propaganda política, só lhe fosse reconhecida na beira do túmulo. Estas são ocasiões de pensar sobre a memória, sua lentidão e talvez sua justiça final.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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