sexta-feira, 6 de maio de 2011

Seres imaginários e problemas reais :: Monica B. de Bolle

Nos idiomas primitivos germânicos, Valquíria significa "aquela que escolhe os mortos", recolhendo as almas daqueles que tombam em combate. O Catóblepa é uma fera de tamanho médio e andar lento por causa da sua cabeça notoriamente pesada, que faz com que se incline sempre em direção ao solo. Já a Quimera foi descrita como um ser com cabeça de leão, tronco de cabra e cauda de serpente. Mais recentemente, como destaca Jorge Luis Borges no delicioso Livro dos Seres Imaginários, a palavra passou a significar o impossível, a ideia falsa. As Valquírias estão à solta, prontas para recolher as vítimas do combate ao excesso de endividamento e do desarranjo macroeconômico mundial. Os Catóblepas são os pobres países endividados, que já não conseguem erguer suas cabeças. E a ideia quimérica de que, apesar disso, a recuperação poderá prosseguir sem grandes desarranjos na condução da política econômica ainda não foi recolhida pelas Valquírias.

A redescoberta do risco de crédito nos balanços do setor privado e, mais recentemente, nos balanços do setor público é o legado da crise de 2008. A herança das dívidas cronicamente elevadas das economias avançadas tem acentuado os conflitos entre os objetivos da política econômica e danificado a governança dos países maduros, detonando um pernicioso processo que se retroalimenta e dificulta enormemente a tarefa de traçar cenários minimamente confiáveis para os mercados de ativos, para as empresas e para os consumidores. A dificuldade de impulsionar o motor de arranque da economia global, refletida nos dados mistos de atividade nos EUA, no Reino Unido e na Europa, tem relação direta tanto com a perda de tração política dos líderes mundiais quanto com a redução da eficácia dos instrumentos de política econômica disponíveis.

A grande dificuldade para aqueles que vivem de elaborar cenários e sustentá-los com argumentos convincentes é que o problema das dívidas, como o Catóblepa, é uma fera de andar lento. É fácil imaginar que o mundo ainda tenha pela frente um longo período de convivência com as dívidas elevadas, dificultando a administração da política econômica e perpetuando o atual quadro de desarranjo macroeconômico. Neste ínterim, vão surgindo velhas tentações que, se por um lado podem eventualmente ajudar a sanar as dívidas, de outro podem provocar surtos de desequilíbrio e volatilidade prejudiciais ao desejado andamento suave da recuperação.

Num artigo recente muito interessante, Carmen Reinhart, do Peterson Institute for International Economics, e M. Belen Sbrancia, da Universidade de Maryland, mostram que episódios passados de excesso de endividamento do setor público nas economias avançadas foram resolvidos por meio da manutenção de taxas de juros reais excepcionalmente baixas por períodos prolongados. A capacidade de manter as taxas de juros em patamares historicamente baixos durante um longo intervalo de tempo foi alcançada mediante a combinação de maior tolerância inflacionária com medidas de repressão financeira, limitando o aumento das taxas de juros nominais. Foi assim que foram resolvidas as dívidas exorbitantes do pós-guerra, logo que implantado o regime de Bretton Woods, em 1945.

Se um caminho parecido com esse já tiver sido escolhido pelas autoridades americanas para lidar com os problemas de endividamento do emissor da moeda internacional, como parece ser o caso, as bruxas do excesso de liquidez global continuarão a castigar a condução da política econômica nas economias emergentes. Nesse ambiente permanentemente hostil, caberá aos gestores de política econômica desses países se desvencilharem de vez das ideias quiméricas sobre a manutenção do ritmo de crescimento da demanda com inflação controlada. O risco de acreditar na possibilidade de alcançar um crescimento que ruge como um leão mantendo os preços aterrados como a cabra, por intermédio de políticas contorcionistas como a serpente, é ser recolhido, num futuro não muito distante, pelas temíveis Valquírias.

Economista, professora da PUC-RJ, é diretora do IEPE/CASA DAS GARÇAS

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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